Especialistas buscam entender por que o Brasil tem 200 mortes de grávidas e mulheres em pós-parto por covid-19

São ao menos 1.860 registros da doença notificados nesse grupo de mulheres no país até o último dia 14 de julho. Nos EUA, que hoje lideram os óbitos gerais pela infecção, são 35 gestantes e puérperas mortas até o último dia 21.

Patrícia Albuquerque, 38 anos, de Colíder (MT), morreu no último sábado (25) sem conhecer a filha, Ana Beatriz. A menina nasceu com 34 semanas de gestação há pouco mais de um mês, quando a mãe foi internada em um hospital de Goiânia (GO) por complicações da covid-19.

A estudante de psicologia Patydam Castro, 34, de Rio Branco (AC), estava grávida de seis meses ao ser intubada em 12 junho também com a forma grave da infecção. O bebê morreu três dias depois, após o parto na UTI, onde a mãe estava em coma induzido. Ela morreu depois de oito dias.

A fisioterapeuta Viviane Albuquerque, 33, morreu em 5 de abril no Recife (PE). O filho havia nascido um dia antes, com 31 semanas, após uma cesariana de emergência feita pelo agravamento do quadro de covid-19 da mãe. O bebê sobreviveu.

Os casos se somam aos de outras 201 mulheres que morreram nos últimos meses na gestação ou no pós-parto após diagnóstico de coronavírus. Ao todo, são ao menos 1.860 casos da doença notificados nesse grupo de mulheres no país até o último dia 14 de julho.

Os números são do Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe) e estão sendo compilados por um grupo de obstetras e enfermeiras de 12 universidades e instituições públicas, entre elas, Fiocruz, USP, Unicamp e Unesp, que acompanha a mortalidade materna durante a pandemia.

Morte materna é um evento sentinela, ou seja, indicador da qualidade de saúde oferecida num país. Por ano, o Brasil registra cerca de 60 mortes de mulheres grávidas ou no pós-parto por 100 mil nascimentos de bebês vivos, uma taxa considerada alta. Portugal e Argentina têm 8 e 39 mortes por 100 mil, respectivamente.

O número de mortes durante a pandemia ainda é parcial, mas os pesquisadores já estimam um salto sem precedentes na taxa de mortalidade materna brasileira de 2020. Em 2009, a gripe suína foi responsável por 57 mortes maternas.

No último dia 9, o grupo das obstetras e enfermeiras publicou estudo na revista médica International Journal of Gynecology and Obstetrics com análise de 124 óbitos de gestantes e puérperas brasileiras por covid-19.

À época, o número representava 77% das mortes maternas registradas no mundo. Os Estados Unidos, que hoje lideram os óbitos gerais pela infecção, tinham registrado 35 mortes de gestantes e puérperas até o último dia 21.

Segundo o estudo, 22,6% das mulheres que morreram no Brasil não tiveram acesso a um leito de UTI, 36% não chegaram a ser intubadas.

— Há uma falha gigantesca na assistência. Com a pandemia covid-19, a rede de saúde está mais desarticulada — diz a obstetra Melania Amorim, uma das pesquisadoras.

Para o grupo que fez o estudo, a má qualidade do pré-natal, recursos insuficientes para o manejo de situações de emergência e dificuldade no acesso aos serviços de saúde durante a pandemia são algumas das hipóteses que explicam o aumento de óbitos.

Segundo a médica Fátima Marinho, consultora sênior da Vital Strategies e professora de saúde pública da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o número de mortes pode ser ainda maior.

Além das lacunas nos dados dos óbitos de mulheres em idade fértil, há ao menos 97 mortes computadas como síndrome respiratória aguda grave.

— Grande parte (destas) deve virar covid porque não tinha diagnóstico (quando entrou no sistema) — afirma ela, que também estuda o tema.

Marinho diz que esses números precisam servir de alerta para que os gestores de saúde melhorem urgentemente a atenção das gestantes.

O assunto foi discutido em um evento virtual do Conselho dos Secretários Estaduais de Saúde (Conass). Segundo Maria Auxiliadora Gomes, pesquisadora da Fiocruz, os desafios de acesso e qualidade do pré-natal foram agravados pelas medidas de isolamento.

— Nem todos os locais estavam preparados para fazer o acompanhamento das gestantes de forma remota.

Além disso, ela diz que, em algumas localidades, planos de contingência levaram à desativação de leitos de maternidade – o que foi contornado mais tarde, segundo o Conass.

Risco entre mulheres negras é duas vezes maior

O grupo de pesquisadoras acaba de publicar outra análise em que faz um recorte racial desses óbitos. Em 69 casos pesquisados, o risco de morte das mulheres negras foi quase duas vezes maior do que o das brancas (17% contra 8,9%).

— É um cenário aterrorizante. A frequência de comorbidades foi a mesma, mas as negras chegaram em condições mais críticas, com dispneia e queda de saturação de oxigênio. Tiveram mais necessidade de UTI e de ventilação mecânica — diz Melania Amorim.

Para ela, o retrato reflete não só as falhas de acesso e de assistência do sistema de saúde mas também problemas socioeconômicos e estigmas que afetam esse grupo.

— As mulheres grávidas são terra de ninguém. Se estiver em maternidade sem UTI e desenvolver covid grave, não terá a melhor assistência. Se for jogada numa emergência geral, vai encontrar profissionais que não estão familiarizados com as modificações que a gravidez causa no organismo — diz Melania.

O grupo faz agora um trabalho mais minucioso para levantar dados sobre o local do óbito, o perfil do hospital que atendeu as mulheres, a distância e se ela teve acesso ao serviço.

Rafaela de Jesus Silva, 28, por exemplo, morreu em 1° de abril em Itapetinga (BA) numa UPA enquanto aguardava ambulância para ser transferida para uma UTI em Campina Grande (BA).

O marido, Erivaldo dos Santos, 47, diz que ela apresentou febre e falta de ar seis dias após o parto. O secretário da Saúde do município, Hugo Souza, afirma que Rafaela chegou a ser intubada na UPA, mas não resistiu. Ele ressaltou também que a mulher tinha comorbidade, asma brônquica.

Para Melania, as falhas assistenciais explicam muito mais as mortes maternas do que as eventuais doenças prévias das pacientes.

— Essas mulheres poderiam ser hipertensas, diabéticas, asmáticas, obesas e teriam muitos anos de vida não fosse o fato de terem contraído covid-19 e terem encontrado um sistema desestruturado, em que houve retardo do diagnóstico e das medidas terapêuticas.

Um trabalho do Centro de Controle de Doenças americano (CDC) mostrou que a gravidez aumenta o risco de complicação por covid-19, com mais internação e necessidade de ventilação mecânica, mas não houve maior risco de morte.

— Se há protocolos de atendimento adequados, é possível evitar que elas morram — reforça Melania.

Fonte: Gaúcha/ZH