Após morte de médico, família divulga relatos que ele fez internado para conscientizar sobre perigo da Covid-19: ‘Vou lutar por vocês’

“Meu pai tinha esta questão de família forte, de amor à família. Isso era muito marcante nele”. As palavras são de Claudia Marchesini, filha de um médico de Salvador, especialista em alergia, que morreu no dia 6 de junho, aos 78 anos, com Covid-19. Durante o período de internação, ele enviou diversas mensagens à família, para mantê-los informados do seu estado de saúde.

Além de guardar as memórias afetivas que têm de Dr. Vitório Marchesini Júnior, idoso que dedicou mais de 50 anos da vida à medicina, a família resolveu divulgar a história do médico, mostrando a luta dele pela vida, quando em um período de 20 dias ele saiu de uma condição de boa saúde para o óbito, para conscientizar as pessoas sobre a gravidade da doença.

No início da pandemia, Vitório iniciou o isolamento social, mas depois viu a necessidade de ajudar os pacientes e, por isso, voltou a trabalhar, conforme conta a nora dele, Rafaela Lira.

“Nós avisamos para ele não ir trabalhar, mas ele tinha muito amor à profissão e disse que não deixaria os pacientes ‘na mão'”, conta.

O filho, Victor Marchesini, que também é médico tentou entender a insistência do pai em retornar ao trabalho.

“A vontade de ajudar o próximo. A gente acaba não conseguindo desapegar do trabalho. Conforta a gente de estar ali e poder ajudar. Isso faz a gente dar mais importância ao próximo do que à gente, isso acontece muito na medicina”, disse Victor.

Dr. Vitório deu entrada no hospital com sintomas leves, no dia 18 de maio. Recebeu alta no mesmo dia, mas dois dias depois voltou a ser internado com sintomas graves da doença. Ele passou quase 20 dias internado, e não resistiu. Durante o período, ele passou a compartilhar com a família, através de um grupo de WhatsApp, o que estava vivendo no hospital.

“Essa mensagem é de fé, carinho e sinceridade. Uma boa noite a todos, vou lutar por vocês, que estão comigo. Eu preciso de todo apoio de vocês”, disse Vitório em uma chamada de vídeo,no dia 3 de junho, quando Vitor, por ser médico, conseguiu acesso ao leito de internação do pai.

Para a esposa, Dr. Vitório ainda mandou uma mensagem particular:

“Te amo, estou controlado, viu? Beijos!”.

O médico já fazia planos para quando saísse do hospital, conforme revelou na mensagem enviada para a nora.

“Rafinha, bom dia ou boa tarde, né? Eu estava dizendo a mim mesmo que, quando eu sair daqui, eu vou escrever uma reflexão, sobre o que é o médico que trata os seus pacientes, mas o médico que tem que tratar a si próprio para não morrer. E entre as coisas mais importantes, não todas, mas entre a mais importante, é ver essas fotos de vocês. Isso me dá uma vontade muito grande de voltar. Pode ter certeza que a gente tem que ter uma meta, um aconchego, e é a família, são vocês. Beijo”, diz Dr. Vitório na mensagem

Relatos diários

Vitório Marchesini com o neto, em Salvador — Foto: Reprodução/TV Bahia

Vitório Marchesini com o neto, em Salvador — Foto: Reprodução/TV Bahia

A família relembrou mais momentos de luta do idoso, principalmente os de esperança que ele demonstrava quando estava internado.

“Cau, repetiram a tomografia, deu um resultado semelhante à outra, até melhor um pouco. Tiraram sangue arterial, fizeram oximetria, né? Disse que está normal, e até agora só. Entende? Só estou aqui em observação, já não estou mais com oxigênio, não precisou botar. Nem fui pra UTI. Estou aguardando os médicos passarem aqui, pra ver o que pretendem fazer. Todos os meus dados vitais estão ótimos”, disse Vitório em uma mensagem enviada para a família no dia 20 de maio.

Dois dias depois, Vitório relatou cansaço, confirmou o diagnóstico de Covid-19, mas ainda disse se sentir melhor.

“Fiquei hoje foi mais cansado, mas não é cansado de falta de ar não, cansado de indisposto, de ficar tanto tempo deitado. Mas de uma certa maneira, eu estou melhor, viu? O exame do vírus, né? Deu positivo, mas era o que se esperava mesmo, né?”, disse no dia 22 de maio.

Vitório já no hospital, mas antes de ir para a UTI, em Salvador — Foto: Reprodução/TV Bahia

Vitório já no hospital, mas antes de ir para a UTI, em Salvador — Foto: Reprodução/TV Bahia

A família conta que mantinha as conversas por telefone e acreditava que essa era uma maneira de ajudá-lo na recuperação.

“A gente tentava a todo custo fazer com que ele se sentisse em casa, mesmo não estando em casa. Combinava de mandar vídeos e fotos, confortando ele durante a hospitalização, e que ele tivesse uma evolução melhor”, disse a nora do médico, Rafaela Lira.

Entretanto, três dias depois de ser internado, Vitório piorou. No dia 23 de maio, ao enviar uma mensagem para a família, ele revelou não estar bem.

“Hoje não passei um dia bom, não. Também não foi dos piores. Eu fiquei com… Não era bem falta de ar, mas muita astenia, cansaço, sem vontade de acordar, sem vontade de comer. O pior de tudo que eu estou aqui é falta de apetite. Mas o resto vai levando devagar. E essa tosse que de vez em quando chega, mas num conteúdo geral, eu espero que eu esteja melhor”, disse.

No quinto dia de internação, o médico foi transferido para a UTI, mas seguiu enviando mensagens de áudio para tranquilizar a família.

“Hoje, permaneci 4h sentado e almocei melhor, a falta de ar ainda está, mas está bem melhor também. O oxigênio está na faixa de 92%, 94%, 95%, viu? Estou tomando todos os remédios, lembrando muito de vocês. Saudade muito, muito grande. Querendo sair daqui”, falou.

Foram momentos difíceis para os parentes que estavam do lado de fora e não podiam acompanhar o paciente de perto.

“Na medicina a gente aprende que a família estar próxima é importante e, diante da necessidade de isolamento, o Covid é completamente diferente, é isolado!”, conta Victor, filho de Vitório.

Para o filho que escolheu a mesma profissão que ele, Vitório declarou:

“Victor, pode falar com o médico. Eu confio muito em você. Acompanha, viu? Só para você ter uma ideia, já estou com 19 dias aqui, se você acompanhar, fica mais fácil. Já já estou na enfermaria. Fica acompanhando os médicos, confio em você. Te amo”, disse o idoso.

Ao relembrar a mensagem, Victor conta que o pai foi a maior inspiração para que ele escolhesse a medicina como profissão.

“Éramos muito próximos. Dói, e a gente acaba sofrendo junto. Ele chegou a falar comigo algumas vezes, isso tudo abala bastante a gente. Uma experiência que nunca imaginei que pudesse acontecer”, revela Victor.

No dia 31 de maio Vitório pediu para que os parentes não ligassem mais, apenas escrevessem.

“Galera, estou fraco, com falta de ar, não estou podendo falar, e digitar muito pouco. Todas as informações, através de Victor. Peça a ele para ligar aqui para o hospital”, pediu Vitório.

“Ele mandou a mensagem dizendo que tinha se sentido muito bem e ali foi uma esperança para gente, até a voz estava melhor e a gente ficou muito esperançoso”, disse Rafaela, a nora de Vitório.

No dia 6 de junho, depois de uma forte dor abdominal e uma parada cardíaca, Vitório faleceu.

Dor

Vitório Marchesini antes de ficar doente, em um momento com o neto, em Salvador — Foto: Reprodução/TV Bahia

Vitório Marchesini antes de ficar doente, em um momento com o neto, em Salvador — Foto: Reprodução/TV Bahia

A filha do médico, Claudia Marchesini conta que foi muito difícil ver o pai passando por todo o processo de internação, mas também relembra a força dele na luta pela vida.

“Não dá para processar direito. Fico me lembrando do quanto foi difícil ele passar por isso, acompanhando isso através do nosso grupo, e vendo ali a esperança e a força, a luta dele diária de passar por esta doença que é tão sofrida, de ficar isolado, solitário de não estar junto da família”, diz Cláudia.

“Parece que não aconteceu. Estava tudo bem, de um dia para o outro ele começou a se sentir mal e num intervalo de 20 dias saiu de uma saúde perfeita para o falecimento”, conta Thiago, outro filho do médico.

“A sensação é de que a gente não caiu na real, que meu pai pode voltar a qualquer momento, como se ele tivesse numa viagem”, reforçou Thiago.

A família conta que o velório foi mais um momento difícil.

“Você não pode nem tocar, e aquilo ali foi um baque. Você se isola, você se contamina, você é isolado no hospital, você é isolado na hora de morrer, você é isolado na hora de enterrar, e o caixão também é isolado”, disse Rafaela.

Mensagem de Vitório

De acordo com a família, durante todo o tempo que esteve no hospital, o médico expressou o desejo de divulgar para todos uma reflexão, assim que tivesse alta. Ele não conseguiu, mas a família quis emitir a mensagem.

“Ele queria passar para as pessoas que acreditem que existe [A Covid-19]. Se cuidem, cuidem das pessoas, aproveite cada minuto com as pessoas que você ama”, conta Rafaela Lira, nora do médico.

“Neste momento eu acho que ele pediria para as pessoas tomarem cuidado, ter prudência, que acreditassem mesmo, que fizessem o isolamento”, reforça Victor Marchesini, filho de Vitório.

Outro filho do Vitório, Felipe Marchesini, disse: “Eu acho que a principal mensagem seria para você tomar muito mais cuidados do que você imagina que deveria estar tomando”, reforça.

Fonte: G1