Dois anos depois, fiscalização não acompanha avanço das leis

Normas e procedimentos foram modificados ou atualizados nas três esferas de governo

 kiss
Se há dúvidas sobre se aprendemos ou não as lições deixadas pela tragédia na Kiss, é consenso que, ao menos, estamos mais rigorosos no quesito prevenção de incêndios. Se é muito ou pouco exigente, se defende interesses ou não, se foi usada em busca de protagonismo ou por convicção, a nova lei estadual, sancionada no final de 2013, veio para tentar proteger as pessoas de uma nova tragédia. Isso é inegável, apesar das polêmicas flexibilizações da Lei Kiss.

Além disso, o incêndio desencadeou mudanças na lei federal, que aguarda tramitação no Senado, e nas legislações municipais em todo o país. Normas e procedimentos também foram modificados ou atualizados nas três esferas de governo (veja quadro). De forma geral, o principal problema das medidas propostas para aumentar a segurança em locais de reunião de público é que o não cumprimento não é punido.

Em Santa Maria, de quatro medidas aprovadas, apenas a exigência de alvarás em locais visíveis e de informações sobre lotação em convites está sendo cobrada efetivamente. A proibição de comandas em estabelecimentos com mais de 250 pessoas, na prática, não funciona. O mesmo acontece com placares eletrônicos de controle de público, que não foram instalados. Já a Lei Kiss (estadual) é cobrada pelos bombeiros, mas as multas pelo descumprimento ainda não podem ser aplicadas.

Falta um conjunto de resoluções técnicas que ainda não foi concluído pelo Conselho Estadual de Segurança, Prevenção e Proteção Contra Incêndio. E não há data prevista.

_ A lei só nos dá possibilidade de notificar e interditar. Não dá, ainda, a possibilidade de multar. Então, notificamos quando existe um sistema incorreto que não traz risco iminente à vida e interditamos quando traz risco à vida. Por outro lado, um problema que tínhamos foi resolvido com a nova lei: é o proprietário do imóvel que tem de buscar a regularização. Não cabe aos bombeiros procurá-lo como ocorria antes _ explica o major Gerson Freitas, chefe da Seção de Prevenção de Incêndios do Corpo de Bombeiros de Santa Maria.

O arquiteto Nabor Ribeiro aponta outro problema: as construções antigas que não têm como se adequar às novas regras. Essa também é uma dificuldade enfrentada pelos bombeiros.

_ Não sabemos quantos prédios existem na cidade. São muitas construções clandestinas que deveriam ter PPCI (Plano de Prevenção Contra Incêndio) e não têm. Não temos como mensurar isso, em todo o Estado. Nenhuma prefeitura de nenhuma cidade tem esse controle _ diz o major Freitas.

Apesar de a prefeitura estar fazendo o recadastramento imobiliário, esse dado não será disponibilizado porque a existência de um PPCI não está sendo questionada.
As flexibilizações na Lei Kiss são outra preocupação. Já foram três. Para o prefeito Cezar Schirmer, o caso é exemplo de que é preciso ter cautela ao se propor mudança na legislação:

_ No Brasil, há um vício de mudar a lei. No caso da Kiss, muito foi feito no calor do acontecimento. Acho isso sempre ruim. Porque não é a lei que resolve e, sim, uma mudança de mentalidade. Depois, com o passar do tempo, a questão legal deve ser analisada com amadurecimento.

Atualmente, uma comissão da prefeitura trabalha na atualização da lei municipal de 1991. Segundo o prefeito, “em uma análise mais racional e menos emocional.”
A lei do município é considerada rigorosa por profissionais da área de engenharia e de prevenção de incêndio. Tanto que foi usada como base para a reformulação da lei estadual.

_ Santa Maria foi o município que deu exemplo no país com a lei municipal de prevenção a incêndios, em 1991. Só que a lei veio antes da estruturação dos setores da prefeitura e dos bombeiros, que não acompanharam essa vanguarda da legislação _ avalia o engenheiro civil e de segurança Adelson Rodrigues Gonçalves.

A legislação estadual traz atualizações, mas, para o engenheiro, poderiam ser adotadas medidas compensatórias para estruturas antigas que não conseguem se adequar a determinadas normas.

Segurança também passa pela qualificação

Não existe nenhum projeto encaminhado na Seção de Prevenção de Incêndios (SPI) depois da tragédia na Kiss que tenha sido aprovado em primeira análise, segundo o Corpo de Bombeiros. Todos saem do setor com notificações de correções.

Profissionais da área da construção reclamam que os projetos vão e voltam sempre com mais e novas exigências dos bombeiros. E que há déficit de pessoal. Eles defendem a existência de arquitetos atuando na corporação.

_ A falta de pessoal numérico e qualificado nos bombeiros é fato. A Brigada Militar tinha que contratar arquitetos para analisar os processos _ diz o arquiteto Nabor Ribeiro.
Os bombeiros contestam. Segundo o comandante regional, tenente-coronel Luis Marcelo Gonçalves Maya, e o chefe da SPI, major Gerson Freitas, a situação é decorrente da qualidade dos projetos que chegam à seção.

_ O que percebemos é que muitos profissionais estão apenas juntando documentos ou fazendo planos incompletos. Os bombeiros analisam o projeto, apontam tudo o que deveria ter sido feito, ou seja, constroem o plano e devolvem-no ao profissional. Ele corrige alguns itens, observa que o prazo para reencaminhar está se encerrando e entrega de novo aos bombeiros, sem ter feito o necessário. Notificamos de novo. Ele corrige mais alguns itens, encaminha de novo. E, assim, sucessivamente, o projeto vai e volta, e o tempo vai passando _ considera o major Freitas.

Os bombeiros dão uma dica a quem contrata os profissionais para elaborar e encaminhar os projetos: acompanhe o trabalho de quem contratou. Isso pode ser feito na página da corporação. Basta que você tenha uma senha.

_ O “jeitinho” não será erradicado, mas a proporção está mudando e vai continuar mudando. As pessoas vão entender que o mais fácil é cumprir a legislação. Aposto muito nas gerações de profissionais que virão a partir de agora. Acho que já temos uma Santa Maria mais segura, mas, no futuro, isso vai acontecer pela consciência das pessoas, e não mais por imposição do poder público _ acredita o comandante regional dos bombeiros.

Novas propostas devem figurar no cenário político

Para os especialistas, as mudanças não devem parar nas leis. Além dos reflexos na legislação de prevenção de incêndios e nos estabelecimentos, a tragédia terá reflexos na política local. ela já foi tema nas eleições estaduais de 2014 e deverá figurar também nas eleições municipais de 2016. Possivelmente, por meio de propostas na área de prevenção e também na organização da máquina pública, em especial, da fiscalização.
o deputado estadual Jorge Pozzobom (PSDB) aponta duas ideias para a cidade: a criação de uma secretaria especial de defesa civil para tratar de prevenção de desastres e de uma sala onde bombeiros e servidores da prefeitura trabalhem juntos para ter fiscalização compartilhada e agilizar processos.

Para o Estado, a proposta é a criação de um mapa dos locais onde ocorrem desastres _ temporais, enchentes, etc.
de uma forma geral, o cientista político guilherme howes acha que os próximos governos devem implementar as medidas que surgiram e que ainda virão como reflexo do incêndio:

_ A tragédia é uma questão política no sentido de ação para a vida. Política eleitoral, a Kiss não é. Não deveria ser. Mas, infelizmente, terá mau uso político com certeza. Os reflexos políticos nas próximas eleições municipais serão muito fortes e, por dois ou três mandatos, a prefeitura ainda trabalhará ponderando sobre tudo o que a tragédia poderá ter ensinado.

Para os especialistas, independentemente de uma lei ou de fiscalizações de agentes públicos, a mudança depende de cada um nós.

_ Acho que a população vai lutar mais para que menos pessoas sejam vítimas de negligências. a mudança é individual, mas vai resultar em atos coletivos que vão colaborar para que tenhamos uma cidade mais segura _ projeta Roselâine Casanova, coordenadora do curso da História do Centro Universitário Franciscano (Unifra).

O QUE DIZEM AS NOVAS LEIS

LEGISLAÇÃO FEDERAL

LOTAÇÃO, ALVARÁS E PPCI EM PORTAS E CONVITES
Portaria 3.083 do Ministério da Justiça

– Estabelecimentos de lazer, cultura e entretenimento terão de afixar na entrada do local os alvarás de bombeiros e de funcionamento, com número e datas de validade, e a capacidade de público
– As informações devem constar em materiais publicitários de divulgação dos eventos impressos e na internet
– A medida começou a valer em 26 de dezembro de 2013
– A fiscalização é feita pelos Procons. Denúncias também podem ser feitas em delegacias da Polícia Civil, à Brigada Militar e ao Ministério Público

LEGISLAÇÃO ESTADUAL

LEI DA KISS
Lei Complementar 14.376

– A lei de prevenção contra incêndios foi aprovada pela Assembleia Legislativa em 11 de dezembro de 2013 e sancionada pelo governador Tarso Genro 15 dias depois. A regulamentação, por meio de decreto, ocorreu em 11 de setembro de 2014
– Estabelece, para edificações e áreas de risco de incêndio no Estado, normas sobre Segurança, Prevenção e Proteção contra Incêndio, competências, atribuições, fiscalizações e sanções administrativas. Baliza a atuação das administrações públicas municipais e edição de legislações locais
– Em maio do ano passado, o Tribunal de Justiça suspendeu o artigo que exigia alvará dos bombeiros para que os municípios emitissem licenças de funcionamento para estabelecimentos de menor risco
– A legislação foi atualizada e teve pontos revistos com nova publicação da redação final, em 2 de julho de 2014. Entre as mudanças, foi incluída a possibilidade de os municípios emitirem licenças provisórias de funcionamento para locais de pequeno risco de incêndios
– Outra flexibilização ocorreu em 25 de novembro, quando a Assembleia Legislativa aprovou aumento de 750m² para 1,5 mil m² na área de imóveis que podem apresentar PPCI simplificado para obter alvará de prevenção contra incêndios
– O Conselho Estadual de Segurança, Prevenção e Proteção Contra Incêndios trabalha na elaboração de um conjunto de resoluções técnicas que complementará a lei

LEGISLAÇÃO MUNICIPAL

PLACAR ELETRÔNICO
Lei 5.840, de 2014

– Determina que os estabelecimentos de diversão noturna, com aglomeração de pessoas sem assentos marcados para a totalidade de público, boates e danceterias instalem dispositivo eletrônico de contagem das pessoas presentes no recinto, em local visível, dentro e fora, indicando a capacidade total
– O prazo de adequação era de 120 dias, contados da data publicação, em março de 2014
– O controle cabe ao setor de fiscalização do município

LEI DAS COMANDAS
Lei complementar 93, de 8 de julho de 2013

– Estabelecimentos de diversão noturna, cuja capacidade seja superior a 250 pessoas, não podem realizar a cobrança de consumo por meio de comandas
– Já em vigor. Cabe ao Procon fiscalizar os locais mediante denúncia

Fontes: DIÁRIO DE SANTA MARIA