No RS, 360 pessoas foram assassinadas entre 2010 e 2013 no ambiente doméstico
A Lei Maria da Penha, sancionada há oito anos, é considerada um marco no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher, violência esta que matou ao menos 360 pessoas de 2010 a 2013 no Rio Grande do Sul, segundo dados da Secretaria Estadual da Segurança Pública.
Comparando à cultura milenar em que a mulher é vista como submissa e exposta a todo tipo de agressão, a lei pode ser considerada muito recente. Tão nova a ponto de ainda apresentar lacunas a serem trabalhadas pelo poder público e toda a cadeia envolvida no atendimento às mulheres.
Mas em sua curta existência a Lei Maria da Penha já provocou um avanço reconhecido pelas próprias vítimas: o encorajamento à denúncia. Dados da Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres mostram que vem crescendo o número de atendimentos no Centro Estadual de Referência da Mulher Vânia Araújo Machado e pelo Telefone Lilás. Em 2010, 243 mulheres procuraram a central de apoio. Em 2013, foram 3,1 mil. Neste ano, até junho, 1,4 mil pessoas já usaram o serviço.
Assistindo a reportagens na televisão sobre a Lei Maria da Penha, Sofia (o nome verdadeiro foi preservado) acreditou que também seria possível se livrar do companheiro agressor. A moradora de Porto Alegre iniciou o relacionamento há sete anos e, em pelo menos seis, sofreu todo tipo de violência: moral, psicológica, física e patrimonial. Além de Sofia, os filhos também passaram a ser vítimas. “Ele não podia ser contrariado. Eu sempre achava que espancar os filhos não era a forma de educar, e ele não aceitava isso”, conta.
Há indícios de que o próprio agressor já tinha sido violentado enquanto criança dentro de casa por parentes e o mau exemplo trazido da própria família acabou aplicando à sua própria. “Quando eu o ameaçava ele sempre dizia que iria mudar, que não iria bater mais, mas isso nunca acontecia”, diz.
O último espancamento fez com que Sofia procurasse ajuda. Chamou a Brigada Militar, foi até a Delegacia para a Mulher, aceitou a aplicação da Lei Maria da Penha, viu o companheiro ser preso. No entanto, pouco antes de o agressor voltar à liberdade, passou a reviver as lembranças dos dias violentos. Pareceu adivinhar: o homem desobedeceu às medidas protetivas e se apossou da casa que estava sendo ocupada por Sofia. Neste momento, ela entendeu que havia chegado a hora de se mudar para um lugar em que pudesse viver longe de seu algoz.
Desafios e lacunas que devem ser preenchidas
A lei 11.340, de agosto de 2006, criada para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, ainda apresenta desafios em sua aplicabilidade. Sofia, a mulher que teve a sua história contada nesta reportagem, tem uma sugestão para que a legislação seja mais eficaz. “Meu companheiro entrou na cadeia e parece que saiu ainda mais violento. Tinha que haver um tratamento, uma avaliação do agressor antes de ele ser solto”, propõe a mulher que entende que a prisão não trouxe lições positivas a ele.
Para a secretária estadual das Políticas para as Mulheres, Ariane Leitão, ainda que a lei seja fundamental para avanços no sentido de coibir a violência, é preciso ainda que todos os poderes do Brasil tratem esse tema como prioridade. Para isso, na visão da secretária, são necessários mais recursos, mais debates, mais capacitação e, especialmente, uma mudança cultural. “Temos que trabalhar para que a questão cultural seja vencida, porque esta violência está colocada cotidianamente na nossa sociedade.”
Para exemplificar os desafios ainda impostos, Ariane lembra que no Estado tem apenas uma vara especializada na violência doméstica. Outras dez estão em fase de ser implantadas. “Agora, estamos mobilizados para cobrar esta implantação. Nada é fácil. Se ficarmos parados, ninguém vai fazer nada”, sentencia.
Para a psicóloga Luciana da Cunha Krebs, que trabalha na Casa de Apoio Viva Maria, a eficácia da lei depende de mais capacitações. “Os profissionais precisam conhecer toda a rede envolvida, cada serviço prestado e as atribuições de cada órgão. As pessoas têm que entender o ciclo da violência e não deixar brechas”, indica. No caso de a rede falhar, Luciana diz que é possível a mulher se sentir desamparada e não é incomum ver ela voltando a dividir a residência com o companheiro.
“A peculiaridade desta violência é que, geralmente, a vítima ama o seu agressor, porque é o pai dos filhos dela, é quem ela escolheu para viver, e muitas vezes mantém dependência econômica por ser impedida de trabalhar.”
Na Casa de Apoio Viva Maria, a coordenadora Luciane Machado nota que apenas os casos mais complexos têm chegado até o abrigo, depois da vigência da legislação. Para ela, isto significa que a norma tem inibido muitos homens a desrespeitarem as medidas protetivas à mulher. “Quando a lei surgiu achávamos que aumentaria muito a demanda da casa, mas têm vindo para cá só casos em que o agressor se dispõe a ir até as últimas consequências”, observa.
Por mais que ainda existam lacunas e amarras culturais, a secretária de Políticas para as Mulheres classifica a Maria da Penha como “histórica”. “É uma lei revolucionária, que convida o poder público a uma grande mobilização.”
Fonte: Correio do Povo