Médicos detalham como está sendo a pior semana da covid-19 no RS

Reportagem de GZH ouviu relatos que dão a dimensão do agravamento da pandemia.

Na semana em que Porto Alegre superou o teto de 383 pacientes internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), número estimado pela prefeitura ainda no início da pandemia de coronavírus como limite para não correr o risco de colapso na estrutura de atendimento, os recordes de internações passaram a ser quebrados diariamente. A situação enfrentada pela Capital também se reflete no Estado, com Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e hospitais alcançando 100% de leitos ocupados em diferentes regiões.

A reportagem de GZH ouviu, nesta semana, os relatos dos que estão na linha de frente de combate à doença.

Em 22 de fevereiro, o clínico geral Daniel Fabiano Pires, 34 anos, médico na UPA 24h de Sapiranga, teve 15 pacientes no oxigênio ao mesmo tempo, um número até então jamais alcançado. Ao final da entrevista, feita por telefone na quarta-feira (24), Pires recebeu o resultado do exame PCR e descobriu estar positivado para coronavírus.

Em 23 de fevereiro, a médica Janete Rousselet de Souza, 49 anos, da UPA Moacyr Scliar, em Porto Alegre, acompanhou 63 pacientes num espaço onde deveria ter 17 pessoas. Ao longo das duas últimas semanas, quase que diariamente, o médico socorrista Aécio da Costa Fagundes, 34 anos, também da Capital, tem ficado mais de três horas estabilizando um paciente até conseguir um leito e removê-lo de casa para o hospital.

“Peço à população que acredite no SUS e na ciência”

André Ávila / Agencia RBS
Aécio da Costa Fagundes, 34 anos, médico socorrista na Ecco SalvaAndré Ávila / Agencia RBS

“Antes da pandemia, a média entre estabilizar o paciente em casa e a chegada ao hospital levava cerca de uma hora. Nas duas últimas semanas, chegamos a ficar mais de três horas na casa do paciente o estabilizando e tentando um local para transferi-lo. A demora para conseguirmos o leito tem sido angustiante. Tivemos picos durante toda a pandemia, mas agora está muito mais difícil.

Quando chegamos aos locais de atendimento, a gente percebe que estão muito lotados. Mesmo com superlotação, não deixam de receber os mais graves. Vi pacientes sentados em poltronas e cadeiras recebendo oxigênio em cilindros porque já não tem mais parede com estrutura de oxigênio nas unidades. Um ambiente físico que poderia receber cinco pessoas, está com 10, 15 pacientes e, às vezes, até mais.

André Ávila / Agencia RBS
Aécio faz plantões diários no atendimento de emergênciaAndré Ávila / Agencia RBS

Para se ter uma ideia, a maca da empresa tem ficado retida nos locais. O normal era chegar com o paciente na unidade, e ele já ser transferido. Agora, ele entra direto e fica aguardando até conseguirem fazer um espaço para incluí-lo. Muitas vezes, a ambulância volta para a base, faz a higienização e volta para buscar a maca ou, quando demora mais, outra ambulância passa e busca o nosso equipamento.

Durante o atendimento a casos de covid-19, consigo perceber pacientes e familiares mais ansiosos, mais preocupados. Apesar da situação crítica do paciente, manter a calma e o foco são essenciais para realizar o atendimento inicial e buscar um leito para ele. Mas quando chego em casa me sinto mais cansado porque tudo isso nos consome.

São vários sofrimentos. É angustiante pelo paciente por ele estar passando por aquele momento. E também quando chegamos à unidade para transferir a situação aos colegas que estão na linha de frente, nas redes privadas e do Sistema Único de Saúde (SUS). Vejo o esforço deles para receber os pacientes e dar todo o tratamento. É uma situação desesperadora, de se colocar no lugar do paciente e do colega sobrecarregado. Converso com colegas que estão passando por isso e eles dizem estar num cenário de guerra.

Jefferson Botega / Agencia RBS
Socorristas também sentem os efeitos da superlotaçãoJefferson Botega / Agencia RBS

Não tive covid-19 e sigo mantendo todos os cuidados no trabalho, com protocolos específicos de paramentação, e fora dele, com uso correto de máscara, álcool gel e respeito o distanciamento social. Devido às restrições impostas pela pandemia, priorizo momentos de lazer em casa com a minha família. Ultimamente, tenho me dedicado a ouvir discos de vinil.

Peço à população que acredite no SUS e acredite na ciência. Não existe tratamento precoce contra a covid-19! O mais importante neste momento ainda segue sendo a conscientização, e assumirmos a responsabilidade que cabe a cada um de nós, seguindo os protocolos de distanciamento social, higienização das mãos e uso correto de máscara.”
Aécio da Costa Fagundes, 34 anos, médico socorrista na Ecco Salva Emergências Médicas há três anos, em Porto Alegre.

“Estamos vivendo uma guerra “

André Ávila / Agencia RBS
Janete Rousselet de Souza, 49 anos, médica há cinco anos da UPA Moacyr ScliarAndré Ávila / Agencia RBS

“Do Carnaval para agora, piorando a partir do final de semana passado, foi um aumento exponencial do número de pacientes que precisam de leitos de UTI e, principalmente, de leitos de enfermaria. Ficamos represados com pacientes com diagnósticos clínicos não-covid e covid. Observamos o aumento de casos graves entre pacientes na faixa dos 18 a 45 anos, sem comorbidades, precisando de oxigênio.

A terça-feira (23) passada foi o pior dia. Tínhamos 63 pacientes em leitos de observação, aguardando serem removidos para hospitais de Porto Alegre e região, num espaço onde caberiam, no máximo, 17 pessoas. Em outros, que seriam para três, tínhamos seis pacientes, sem espaço para os profissionais circularem.

Os pacientes clínicos, que antes desta atual situação ficavam em macas, de uma forma mais confortável, na sala de observação, tiveram que ser agrupados também na sala de medicação, em poltronas. E quando isso ocorreu, não tínhamos condições de atender pacientes que vinham de fora porque não teríamos como medicá-los. Foi quando chegamos ao extremo de fechar as portas e só atendermos os mais graves.

É extremamente angustiante porque ali estamos vendo, realmente, a realidade da população. As pessoas já sofrem normalmente e, com tudo isso, a situação está bem pior.

André Ávila / Agencia RBS
Janete atendendo pacientesAndré Ávila / Agencia RBS

Nossa estrutura física e de pessoal está defasada, porque o grupo está cansando e adoecendo. Nós temos um bom suporte do Grupo Conceição e não nos falta equipamentos. Mas sabemos que esta não é a realidade de outros PAs de Porto Alegre, a situação da saúde está muito prejudicada.

A questão de idade do paciente não é o divisor de águas para um paciente ser entubado. É uma série de critérios referendados por várias sociedades médicas. Temos pacientes cadastrados na central de internação da prefeitura e nós, como profissionais da UPA, não temos como definir quem vai ou não vai primeiro. E estas questões não são definidas por um único médico, precisa passar por uma comissão médica. Até agora, isso não aconteceu na UPA.

Por mais que a gente diga que durante a formação médica e por tempo de vivência vamos criando alguns tipos de couraças, quando cai na nossa porta a situação é totalmente contrária. No final do ano passado, perdemos para a covid uma colega enfermeira, jovem e sem comorbidades. Foi muito difícil para todos. Então, seja da área médica, da enfermagem ou da parte administrativa, nós estamos sempre unidos e nos fortalecendo. Para trabalhar na área de emergência, precisa ter vocação e amar o que faz porque, do contrário, não suporta o sofrimento humano.

André Ávila / Agencia RBS
Leitos lotados em UPA da CapitalAndré Ávila / Agencia RBS

Tento encarar a vida como um propósito. Neste momento, minha vida pessoal está em segundo plano. Me afastei de atividades sociais e sei que a família está sofrendo. Não vejo minha mãe, que mora em Canoas, desde abril do ano passado. Meus dois filhos, de 12 anos, ficam comigo duas semanas por mês, intercaladas. Acredito que tudo isso ainda vai passar, mas precisamos que a população colabore seguindo os protocolos, usando máscara, álcool gel, mantendo o distanciamento, porque está difícil. Estamos vivendo uma guerra e cabe a cada um de nós saber nos preservar para que o coletivo seja preservado.”
Janete Rousselet de Souza, 49 anos, médica geriatra há 25 anos, há cinco anos da UPA Moacyr Scliar, em Porto Alegre.

“Não foi algo gradual. Em dois dias, lotou tudo”

Viviane Meyer / Arquivo Pessoal
Daniel Fabiano Pires, 34 anos, médico clínico geral na UPA 24h de SapirangaViviane Meyer / Arquivo Pessoal

“Na semana anterior ao Carnaval, estranhei a chegada de dois pacientes graves, ao mesmo tempo. Isso porque em janeiro fiquei duas semanas sem internar nenhum caso de covid e tivemos quatro mortos durante o mês inteiro. Até tinha começado a achar que havia atingido a imunidade de rebanho porque a cidade tem uma população jovem.

No final de semana do Carnaval, transportei um paciente da UPA para o hospital (Sapiranga) e vi pela primeira vez pacientes em macas no corredor. A partir de 20 fevereiro, se tornou avassalador. Nunca pensei que veria algo assim na vida. Fez o pico do ano passado parecer bobagem. A dificuldade maior começou na segunda-feira passada (22), quando precisei segurar paciente na UPA por falta de leito nos hospitais. Foi o ápice, com 15, ao mesmo tempo, no oxigênio. Não foi algo gradual. Em dois dias, lotou tudo.

Durante o ano passado inteiro, mantivemos duas salas para covid (suspeitos e confirmados). Nesta semana, porém, tivemos que usar inclusive consultórios médicos para colocar pacientes no soro. Estávamos com quase todas as salas com pacientes covid. Apenas duas eram para outros casos.

No domingo (21), internei um jovem de 26 anos, obeso, com 90% de comprometimento dos pulmões. Também atendi pacientes com 22 anos e 25 anos, com saturação muito baixa. Me preocupou muito porque no ano passado, a mais jovem que internei tinha 29 anos. E ainda começaram a aparecer mais casos de pacientes com pneumonia secundária à covid. No meu último plantão, precisei internar na UPA dois pacientes com pneumonia.

De 17 de fevereiro em diante, passamos a ter óbitos diários. Até quatro por dia. Ano passado, foi um óbito a cada dois dias.

Viviane Meyer / Arquivo Pessoal
Dez minutos depois de conceder entrevista por telefone, Daniel descobriu que está com covid-19Viviane Meyer / Arquivo Pessoal

Priorizamos o critério de gravidade para atendimento, e espero que a gente não chegue ao ponto de precisar escolher pacientes. Os pacientes não-covid estão sendo negligenciados pelo sistema como um todo. Nesta semana, atendi um senhor de cerca de 50 anos com cinco costelas fraturadas e precisei mandá-lo para casa porque ele precisaria esperar muito pelo exame de tomografia, que está praticamente sendo usado apenas para covid. Se não houvesse a pandemia, ele faria o exame e só depois iria para casa. Mas se eu mantivesse ele na UPA, correria um risco enorme de ficar exposto ao coronavírus. Tive que ir pela radiografia e pelo exame físico para orientá-lo. Entre a opção ruim e a pior, optei pela ruim.

Teve um outro caso que me marcou muito. Foi uma paciente com câncer agressivo de pulmão, descoberto no mês passado. Ela chegou à UPA com a pressão muito baixa. O tumor é próximo do coração e ela estava com o rosto inchado, provavelmente, porque o coração começou a ser pressionado. Só fui conseguir uma tomografia para a paciente quatro dias depois. Precisei implorar ao hospital pelo exame, pensando no que iria dizer aos familiares caso ela viesse a óbito. Eu precisava dar uma satisfação. Em outra situação, ela passaria pelo exame na mesma hora e seria encaminhada com urgência diretamente à oncologia para iniciar tratamento, na tentativa de diminuir o tumor. Mas foram quatro dias para fazer o exame que poderia confirmar se este seria o caso. A última notícia é que ela está no hospital em estado muito grave.

Dizer para alguém que o pai ou mãe dela com câncer não terá um leito no hospital é dolorido demais (neste momento, Daniel suspende temporariamente a entrevista e chora).

Em outros momentos, quando eu trabalhava em outra cidade e o hospital de referência havia fechado, sabia que insistindo no poder do grito conseguiria mandar o paciente para algum lugar e resolver o problema.

Nunca tinha acontecido de chegar para a pessoa e dizer que não tem o que fazer. E é algo que está se repetindo. Isso afeta a gente. Liberamos a pessoa vendo o futuro  dela. Sabemos o que vai passar, o que sofrerá. E não poder fazer nada é muito difícil. É uma sensação de solidão.

As pessoas estão falando da covid, mas há muitas pessoas com outras doenças também sendo afetadas, que estão sofrendo e morrendo.

Na segunda-feira (22), atendi 109 pacientes em 12  horas de plantão. Tentei fazer de forma rápida para eles não esperarem porque não sabemos quais pessoas estão assintomáticas de covid. É um perigo invisível. Pedi desculpa para muitos pacientes e expliquei o motivo de estar atendendo de forma mais rápida.

André Ávila / Agencia RBS
Números da covid-19 seguem subindo em todo o RSAndré Ávila / Agencia RBS

O que estamos notando é a vinda de mais pacientes com dores abdominais e febre ainda mais alta. Menos pacientes perdendo olfato e paladar, mas com mais febre, fraqueza e dor no corpo.

É muito difícil pedirmos para ficar em casa uma pessoa que depende daquele trabalho para alimentar a família. Mas será ainda mais difícil quando ela chegar ao sistema de saúde precisando de oxigênio ou enfrentando uma situação precária porque o sistema está lotado. É necessário a colaboração de todos ou não sairemos desta.

Estou fumando duas carteiras de cigarro por dia. Antes, eu fumava uma. Porque é cansativo criar a esperança de ter a vacina, de ver a redução de atendimentos e, de repente, o mundo voltar a desabar. Tento me inspirar na minha filha (Selina, sete meses). Olho para ela e penso que preciso seguir em frente”.
Daniel Fabiano Pires, 34 anos, médico clínico geral há dez anos. Atende há sete anos na UPA 24h de Sapiranga.

 

Fonte: Gaúcha/ZH