“Minha morte é minha melhor amiga”, afirma especialista em cuidados paliativos

Geriatra paulistana Ana Claudia Quintana Arantes, autora do best-seller “A Morte É um Dia que Vale a Pena Viver”, trata de pacientes com doença sem chance de cura.

Ana Claudia Quintana Arantes já foi presença indesejada. Era aquela convidada que chegava a um evento, aproximava-se de um grupo e logo via a rodinha se desfazer, espantando cada um para um lado, por conta do tema constante que a pautava: a morte. Passados os tempos de maior estranhamento, a médica paulistana, formada em geriatria e cuidados paliativos, tornou-se referência no tema, palestrante de sucesso na série de conferências TED no Brasil – seu vídeo tem 2 milhões de acessos – e autora do best-seller A Morte É um Dia que Vale a Pena Viver (Editora Sextante). 

No último dia 26, ela falou à plateia do 15º Congresso do Ensino Privado Gaúcho, promovido pelo Sindicato do Ensino Privado (Sinepe/RS), na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Logo depois, concedeu entrevista a GaúchaZH. 

– Desperto o paciente e a família para o fato de que o trajeto até a morte não é um trajeto de fracasso, é um trajeto da história de vida daquela pessoa, e isso tem muito valor – esclarece. 

Gosto do começo de A Morte É um Dia que Vale a Pena Viver. Você narra o episódio em que foi a uma festa e, ao ser perguntada sobre sua especialidade médica, resolveu responder algo diferente de “geriatra”, dizendo “eu cuido de pessoas que morrem”. O que mudou na reação das pessoas a essa afirmação desde aquele dia, 10 anos atrás?
O processo de mudança da reação das pessoas foi um reflexo da mudança em mim. Antes eu me envergonhava de falar isso. O propósito da formação do médico é salvar vidas. Quando digo que cuido de pessoas que morrem, é como se estivesse invalidando o grande propósito da medicina. Quando assumi que isso não era errado, que, pelo contrário, isso tinha até mais valor do que ficar tentando salvar a vida biológica a qualquer preço, me reconciliei com essa minha vocação. Fiquei só. A primeira reação foi de afastamento quase que maciço – eu falava, e as pessoas não queriam ouvir. Eu era persona non grata, chegou a esse ponto, de não ser mais convidada para dar aula, para estar nos eventos. Quando eu chegava aos eventos de medicina, as pessoas já me olhavam com aquela cara de “iiiih, estou com medo, ela vai perguntar alguma coisa desconfortável”. Eu continuava desfazendo rodinhas de conversa ou as pessoas davam uma risadinha e iam embora. Mas eu tinha que assumir isso. Aí fui contratada pelo Einstein (Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo) para implantar as políticas de assistência à dor e cuidados paliativos. Entrei pela porta da frente do processo da educação continuada. O reconhecimento veio por causa do bendito selinho de qualidade. As pessoas diziam: “Nossa, cuidar de pessoas que morrem é qualidade? Não é um demérito?”. Não, você ganha selo de qualidade se tratar direito as pessoas, se respeitar a vontade delas. Cuidados paliativos fazem parte de uma abordagem multiprofissional de cuidados à pessoa que tem uma doença que ameaça a continuidade da vida. Você cuida do sofrimento físico, emocional, social, familiar e espiritual, ampliando a visão da assistência para além da doença. Isso é aplicável desde o estágio inicial da enfermidade. As pessoas pensam que tenho que ser chamada quando o paciente está moribundo, mas, quanto mais precocemente você introduzir o cuidado paliativo, mais chance há de a pessoa viver bem, com qualidade.

Félix Zucco / Agencia RBS
Ana Claudia Quintana Arantes na PUCRS: “Todo dia tenho tenho aula particular de vida que vale a pena viver”Félix Zucco / Agencia RBS

As pessoas associam o bem-estar à cura, mas o bem-estar pode estar no cuidado. É paradoxal: como é que a pessoa pode morrer bem? Pode, é possível. Mas o processo de estar dolorida vem da história dela, não está relacionado ao tamanho do tumor ou ao tipo de tumor. É a história dela, o quanto ela tem de sofrimento pelo processo.

ANA CLAUDIA QUINTANA ARANTES

Geriatra

Um geriatra não cura boa parte dos males dos seus pacientes. Uma médica de cuidados paliativos também não. De onde vem a sua satisfação?
Tudo o que eu posso fazer por essas pessoas traz a elas a possibilidade de serem felizes no momento em que estão. Uma pessoa sem dor, pacificada em relação a seus medos e suas angústias, que olha para a sua família e vê uma família fortalecida, que vê sentido na sua espiritualidade e na sua existência é uma pessoa feliz. Então o meu trabalho não vai na direção da cura da doença. Vai na direção da felicidade das pessoas. Eu falo: “O que eu posso fazer para te fazer feliz?”. “Tira a minha dor”, “controla o meu diabetes, “controla minha pressão alta”, “me faz viajar”, elas dizem. As pessoas vão querer não sentir dor e vão querer viajar. Elas não vão estar muito interessadas nos resultados do sódio e do potássio, e eu não posso transformar a vida delas com o propósito de tornar esses exames normais. Tenho que fazer com que os exames não perturbem a vida do paciente. Aí é satisfação direta.

Você dá aulas sobre como lidar com a morte. Como se aprende isso? 
Aprendo isso todos os dias com as pessoas de quem cuido. Tenho um valor para elas: o de usar o meu conhecimento técnico e a minha experiência para favorecer a vida delas, na dignidade que elas consideram dignidade, não na minha opinião. Todo dia tenho tenho aula particular de vida que vale a pena viver, aí que eu aprendo. Estudo bastante, faço cursos, sou uma leitora compulsiva, mas nada chega aos pés do cuidado com os pacientes, do dia a dia com as pessoas.

Imagino que você crie mecanismos para lidar com tudo isso, mas acredito que não se acostume a ver pessoas morrendo, não é mesmo? 
Não. Sempre falo que entro em uma história pela porta que todo mundo quer manter fechada, mas, quando essa porta se abre, quem entra por ali fica definitivamente presente na vida daquelas pessoas. O vínculo que acabo fazendo é muito forte, poderoso e perene, mesmo que eu tenha pouco tempo com a pessoa. Não dá para ter uma relação intensa sem entrega. Não me afasto, não ponho uma carapaça ou uma estrutura que me proteja porque não há do que se proteger, isso é da vida da pessoa. O que me protege é a compaixão porque cuido de você mas não ocupo o seu lugar. Não sou eu que morro, é você que morre. Eu te acompanho. Se precisar ir até o inferno, vou junto, mas não faço parte do inferno, não vou queimar lá. A passagem é solitária, mas o processo todo é acompanhado. Eu sei o meu papel, e o meu papel é de quem cuida, não é o de quem sofre. O espaço é respeitado. Com a compaixão, não tem um sofrimento que para mim é insuportável. Eu sofro, choro junto, me emociono, me mobilizo. Tem pacientes que falecem, com quem eu tinha um vínculo tão forte, que me dou um tempo para viver isso. E tenho pacientes que respeitam isso, então posso ligar no dia da sua consulta e falar: “Olha, fui ontem no velório de uma paciente minha muito amada e vou ficar um pouquinho com a família, em silêncio, vou meditar um pouco”. E você não se sente mal porque eu cancelei, você fica orgulhosa: “Nossa, minha médica faz isso”. Aí falo: “Se você não estiver bem, posso pedir para um colega vê-lo”. O paciente vai dizer que sim ou que não, mas em geral diz: “Não, fica tranquila, eu espero”. Em vez de isso ser considerado uma fraqueza nossa, é uma virtude. Para quem vive o processo de fato, isso é bem-visto. Para os meus colegas de profissão, talvez não seja: “Imagina, você está misturando as coisas. Você não pode cuidar direito das pessoas se misturar porque tem outra pessoa que precisa de você no dia seguinte”. Mas também não posso acreditar que só eu resolvo todos os problemas. Se achar que sou a diferença no mundo, sucumbo. Tenho que ver que posso fazer diferença, mas quando posso fazer. Não fico uma vida de luto, mas preciso ritualizar o processo. Foi o caminho que encontrei.

O que me protege é a compaixão porque cuido de você mas não ocupo o seu lugar. Não sou eu que morro, é você que morre. A passagem é solitária, mas o processo todo é acompanhado.

ANA CLAUDIA QUINTANA ARANTES

Geriatra

Além de se recolher quando necessário, o que mais você faz para extravasar as emoções?
Arte. Escrita e pintura. Pinto aquarelas, que têm um significado: elas não são para sempre, vão descolorindo.

Quais são as reações mais comuns dos pacientes ao saberem que a doença é incurável? 
É pior do que quando você sabe que tem câncer. Vou dar o exemplo do câncer, que é o mais comum: o diagnóstico é um choque. Tem tratamento, você faz o tratamento e também faz tudo: muda de vida, perdoa as pessoas, vai para a terapia, olha para a sua vida com outro olhar, reconfigura tudo, redimensiona a sua espiritualidade. Você faz tudo, e a doença volta. Esse é o momento mais delicado, a recidiva. Você fez tudo, e a doença voltou. E aí você entende que o fazer tudo é pela vida, não pela cura. Você não é mais um lutador contra o câncer, é um lutador a favor da vida. Você não quer morrer tentando, você quer morrer vivendo. E é nesse lugar que eu entro, para despertar essa pessoa e essa família para o fato de que o trajeto até a morte não é um trajeto de fracasso, é um trajeto da história de vida da pessoa, e isso tem muito valor.

Há pessoas que negam, pessoas que aceitam, pessoas que querem resolver as suas coisas. 
Oscila. Como você vai viver vai depender de como você está naquele momento. Você pode estar em um momento em que o único caminho que tem como mecanismo de defesa é negar. E aí não é justo que você tenha o seu mecanismo de defesa destruído. Aprendi na psicologia que o mecanismo de defesa existe para defender. Se você não tem nada de melhor para colocar em troca, respeite. E aí você oscila. Tem o mecanismo de defesa da negação, depois a barganha – “Vou mudar de vida, vou fazer uma promessa, vou parar de fumar, vou comer direito” –, depois chega uma hora em que você fica com raiva – “Pô, sou jovem, não quero morrer agora, não é justo” –, depois você volta para a depressão, aí você vem para a negação de novo quando começa a melhorar. No cuidado paliativo, como a pessoa quase sempre melhora, aí fica todo mundo achando “foi um milagre, estou curado”. As pessoas associam o bem-estar à cura, mas o bem-estar pode estar no cuidado. É paradoxal: como é que a pessoa pode morrer bem? Pode, é possível. Mas o processo de estar dolorida vem da história dela, não está relacionado ao tamanho do tumor ou ao tipo de tumor. É a história dela, o quanto ela tem de sofrimento pelo processo. E, quanto mais tempo se estiver consciente disso, pode ser um mês, a consciência desse processo faz com que você entre em um acelerador de resoluções. Você consegue trabalhar coisas que, na terapia, estava levando 20 anos para fazer. Com uma semana de vida, você resolve na boa.

Muitos tentam ser objetivos e viabilizar seus últimos desejos?
Vai depender da sua história. Se você sempre fugiu de tomar decisões, vai ter alguém que vai tomar decisões por você. Se você sempre tomou conta da sua vida, vai ter essa praticidade. O que as pessoas temem, principalmente as mais práticas, é viver a emoção do processo. E aí é muito bonito porque elas mudam. Aquele pai durão, superfrio, que nunca tocava nas pessoas se torna a criatura mais amorosa da face da Terra. Ele pensa assim: “Não tenho mais tempo para ser chato. Tenho que aproveitar porque vai acabar”. Ao passo que aquelas pessoas que eram falsamente afetuosas, que eram afetuosas para garantir a presença das outras, essa verdade vem à tona, e muitas vezes elas estão sozinhas.

O tempo tem um significado bem particular para pacientes em cuidados paliativos. 
Se você tem consciência da morte, você sabe que esse tempo aqui, entre nós duas, não tem mais volta. E pode ser multiplicado pelo efeito que causa na vida da gente. Podemos levar esses minutos aqui para sempre na nossa vida. “Nossa, aquele dia em que a gente conversou naquele lugar, eu pensei diferente…” Daí você começa a mudar sua atitude lá para a frente. Mas o tempo que a gente troca é único, não tem repetição. Podemos nos encontrar daqui a um ano, sentar com a mesma roupa aqui e não vai ser a mesma coisa, porque eu vou ser outra pessoa e você, também. A qualificação do tempo é aquilo que te transforma e vai proporcionando encontros que também trazem transformação, troca. Isso dá sentido ao seu tempo.

A sua noção de tempo também mudou? 
A minha noção de tempo mudou para melhor depois da minha experiência de adoecimento, quando quebrei o pé, em outubro passado. Entre a queda e voltar a trabalhar normalmente, andando sem bengala, foram cinco meses. Teve gente que se encontrou comigo depois e disse: “Nossa, Ana, você está tão bem! Nem parece que sofreu um acidente grave. Quanto tempo faz?”. “Cinco meses”, eu respondia. “Nossa, mas passou rápido, né?” Quando a pessoa fala isso, respondo: “Você acha que cinco meses passam rápido? Você está precisando quebrar o pé”. Cinco meses duram cinco meses, e você só sabe o que é tempo quando a única coisa que você tiver é tempo. O processo de adoecimento dá a noção do tempo, de verdade. Sempre valorizei muito o tempo por conta do trabalho, tenho a consciência da escolha. Poderia estar com a minha filha, mas estou aqui. Decidi estar aqui porque faz sentido, mas tenho que abrir mão de outra coisa. Você tem consciência das escolhas sobre o que fazer com o tempo, mas do valor do tempo você só tem ideia quando a única coisa que você tem é tempo.

Você pensa no sentido da vida? 
Acho que o sentido da vida é o sentido de cada momento que você está vivendo. A minha vida tem sentido por ser médica, por ser professora, por ser amada, por ser mãe, por amar alguém. Você pode olhar para o sentido da sua vida em todas as dimensões dela, mas sentido de vida mesmo é quando você para e pensa: eu queria estar onde estou agora? Se a resposta é sim, ótimo, você está fazendo as coisas com sentido. Se a resposta é não, você tem que mudar alguma coisa, nem que seja a capacidade de tomar decisões.

E na sua própria morte, você pensa? 
Minha morte é minha melhor amiga. Toda vez que estou estressada com alguma coisa, é ela que chega e fala: “Ana, não tem sentido você ficar braba com isso”. Minha última conversa boa com a morte foi na reforma de casa. Quebrou o varal, e fui para a cama braba. “Nossa, paguei uma nota por esse varal, o cara falou que era o melhor, que a cordinha era forte, e a cordinha quebrou!” Aí pensei: “Cara, se eu morrer amanhã, ninguém vai dizer ‘aqui jaz uma pessoa que tinha o varal com a corda fraca’ ou ‘nossa, coitada, foi enganada!’”. Não tem sentido. Dei risada e fui dormir superbem. Graças a Deus, a morte tem tido pouca necessidade de fazer intervenções mais sérias, mas às vezes ela precisa.

O que é, para você, um dia difícil de trabalho? 
O meu trabalho só me cansa fisicamente. Tem gente que fala: “Os pacientes tiram energia de você! Você precisa se proteger”. Eu digo: “Não, quem tira energia de mim são pessoas como você que ficam falando essas besteiras. Você que me suga”. Meu dia a dia acaba sendo cansativo fisicamente, mas nada que uma noite de sono não resolva. Um dia difícil para mim é ter confronto com o não entendimento dos colegas.

Por exemplo? 
Um paciente meu de muitos anos, com uma série de doenças graves, já esteve para morrer umas 10 vezes nos últimos 10 anos e agora, de fato, ele está em um processo ativo de morte. Ele estava na UTI, sempre falando de mim, e eu não conseguia visitá-lo. “Tomara que ele não faleça antes de eu conseguir vê-lo”, pensava. Consegui. Ele queria ir para o quarto. “Chamei meus filhos, já me despedi deles, tenho duas filhas que estão chegando. Eles sabem o quanto amo essa família, e para mim está tudo bem. Eu só não quero ter frio, não quero ter sede. Não me deixam tomar água, estou com frio, quero sair daqui. Aqui tudo é proibido”, ele já havia dito. Falência cardíaca, falência renal, infecção grave generalizada… Cada uma das doenças dele chega perto de 110% de mortalidade. É inegável, ele tinha dias de vida. Aí a gente fez toda a manutenção das intervenções para o conforto dele. Não era cuidado paliativo tirar tudo, mas dar proporcionalidade às intervenções, para que ele ficasse bem. Numa quinta-feira, isso foi conversado com os médicos titulares, alinhado com a família, tudo escrito no prontuário, tudo certo. Na sexta, ele piorou, e conseguimos controlar os sintomas sem intubá-lo. No sábado, a equipe titular assediou a família: “Vocês vão negar a vida para o pai de vocês? Deveriam intubá-lo, fazer diálise, temos o recurso disponível. Vocês preferem a morte do pai de vocês?”. Ele foi intubado. A única certeza que tenho é que agora ele tem sede, tem dor. Ele vai morrer, só que ninguém o ouviu. O que me faz sofrer, o que me tira o sono, o que me dá dor de estômago é ter vivido isso.

Você reverte uma frase clichê, dizendo que não é a primeira impressão que fica, mas a última. Por quê? 
Você leva para a sua vida a experiência mais intensa do processo. Um exemplo que não é nem de morte: você vai se separar. Você casou com o príncipe encantado, tinha a percepção de que era para sempre, a pessoa a fazia superfeliz e você era a pessoa mais feliz do mundo. Aí você vai se separar: você odeia aquele cara, não quer vê-lo nem pintado de ouro na sua frente. Por quê? Porque a última coisa que ele fez lhe fez muito mal. E aí o processo do fim mata toda a história anterior. Quando você tem um pai que foi mau, difícil, ausente e, no final, ele fala “eu te amo”, é como se você tivesse tido um pai que te amou a vida inteira.

O fim pode salvar todo o resto. 
Salva todo o resto. Nunca é tarde para se envolver.

Fonte: Gaúcha/ZH