Policial trans de SC aguarda há meses atualização de documentos militares para voltar a trabalhar nas ruas: ‘Quero reconhecimento’

Priscila Diana foi afastada das atividades operacionais porque seus documentos pessoais não batem com o sistema da Polícia Militar. Para especialista, problema enfrentado pela sargento reflete direitos negados à população transexual no Brasil.

A sargento da Polícia Militar de Santa Catarina, Priscila Diana Brás e Silva, de 43 anos, espera há pelo menos 11 meses pelo cumprimento total de uma determinação judicial uma resposta que pode dar um novo começo à sua carreira profissional. A agente, que já atuou em unidades operacionais, táticas e na força nacional de segurança pública, agora trabalha na parte administrativa de um quartel no Planalto Norte do estado. Desde que resolveu se assumir como mulher transexual, a primeira da corporação, Diana precisou trocar as ruas por uma sala até que seus documentos militares sejam atualizados, por determinação judicial.

“Nos dois primeiros meses fiquei de licença até a tropa ter uma palestra sobre gênero e sexualidade e depois, foi porque meus documentos não me permitiam trabalhar no operacional” , relata.

 

PM trans de SC aguarda ter identidade reconhecida pela corporação para voltar às ruas

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Em outubro de 2019, Diana teve o nome social reconhecido na corporação e em dezembro do mesmo ano, deu entrada no pedido de alteração de seus documentos pessoais. O reconhecimento de sua identidade transgênero aconteceu sem problemas no meio civil, segundo ela, em janeiro e fevereiro de 2020.

Desde então, da certidão de nascimento ao título de eleitor ela é oficialmente Priscila Diana. Mas no sistema militar, seus documentos funcionais ainda estão seus dados masculinos e refletem alguém que ela nunca quis ser.

“Isso incomoda muito. Pensa, você tentar esquecer um passado que não te agrada e todos os dias ver o seu nome masculino lá. Estou sofrendo por causa disso. Meus dados atuais, que me identificam, não batem com o sistema da polícia. Nem mesmo meu CPF bate mais com meu nome policial. Corro até o risco de ter a minha conta bancária bloqueada por esse motivo” , lamenta.

Espera de 11 meses

 

Após realizar quatro requerimentos internos pedindo pela alteração cadastral, sem sucesso, a sargento entrou na Justiça em março do ano passado. Em maio, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ/SC) determinou a alteração cadastral da Diana, mas a questão não avançou, tanto no sistema estadual quanto no militar.

Primeira PM trans de SC tem identidade reconhecida após 10 meses de espera

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Só nove meses depois, na última quinta-feira (18), a Secretaria de Estado da Administração informou que a decisão judicial que pedia a alteração cadastral dos dados da sargento, no sistema dos servidores estaduais, foi cumprida integralmente. Porém, o Estado não deu prazo para emissão dos documentos físicos e no sistema interno da Policia Militar, a situação continua a mesma.

“[Minha esperança] é poder exercer a minha profissão aonde eu quiser, seja na rua ou no administrativo, mas que isso seja uma escolha minha e dos meus comandantes. Eu só quero o reconhecimento para poder trabalhar” , afirma.

 

Consultado pelo G1, o comando da Polícia Militar, afirma que a mudança cadastral da sargento “depende do trâmite burocrático de cada setor e tem o tempo dos órgãos finalizarem os processos. Mas o quanto antes estará resolvido”.

Processo de readequação

 

A carreira policial de Diana, que já completa 23 anos, foi estimulada desde cedo. Segundo ela, fazer parte das forças policias é a vocação da família, que se divide em policias militares e rodoviários.

Sargento resolveu assumir sua identidade feminina no final de  2019 — Foto: Priscila Diana/Arquivo Pessoal

Sargento resolveu assumir sua identidade feminina no final de 2019 — Foto: Priscila Diana/Arquivo Pessoal

A certeza de ser policial só não era mais forte do que a certeza de que o então, menino que nasceu no interior do Paraná, era na verdade uma menina.

“Me identifico como uma mulher transgênero desde que nasci. Só que quando eu era criança, não entendia direito como funcionava e, principalmente, se existia uma forma de consertar essa situação”, disse.

 

Até 2010, Diana levava a vida tentando conviver com o gênero masculino. “Com o passar dos anos, passei a receber informação. Comecei a fazer acompanhamento psicológico. E descobri que existia uma forma de me enquadrar e ser feliz da forma que eu me sentia. Foi neste momento que decidi fazer a readequação”, disse

Priscila se identifica como mulher desde a infância; há 10 ela ela começou o processo de readequação de sexo — Foto: Priscila Diana/Arquivo Pessoal

Priscila se identifica como mulher desde a infância; há 10 ela ela começou o processo de readequação de sexo — Foto: Priscila Diana/Arquivo Pessoal

Já dentro da corporação, Diana começou a fazer atendimentos psicológicos e passou por procedimentos cirúrgicos. Assumir a sua condição no meio profissional foi o passo seguinte.

“Quando resolvi me assumir, comuniquei meu comandante direto, o coronel da unidade. Para minha surpresa, ele me recebeu muito bem, sabia do meu potencial, do meu trabalho que sempre exerci com compromisso, com respeito. Foi tranquilo também com os colegas de trabalho. Foi surpreendente mesmo esse momento dentro da corporação” , afirma

 

Para sua segurança, ela prefere não identificar a sua cidade de atuação. Mesmo enfreando um momento difícil, a sargento Diana acredita que sua luta tem sido importante para que haja oportunidades e garantia de direitos a outras pessoas.

“Isso deve servir de exemplo, não só para a Polícia de Santa Catarina, mas para as demais instituições para que se preparem. Mesmo que eu não existisse, outras pessoas viriam e virão. É um fato que a sociedade toda tem que saber lidar. Todos têm que aprender que a gente está lutando pelos [nossos] direitos. A gente quer só o nosso espaço”, finaliza.

 

Priscila espera por atualização do cadastro funcional há quase um ano em SC — Foto: Priscila Diana/Arquivo Pessoal

Priscila espera por atualização do cadastro funcional há quase um ano em SC — Foto: Priscila Diana/Arquivo Pessoal

Violação aos direitos, diz especialista

 

Para Clarindo Epaminondas de Sá Neto, professor do curso de Direito e Coordenador o Grupo de Pesquisa e o Núcleo de Estudos em Direitos e Diversidades da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a situação que passa a sargento implica em violação de direitos de personalidade, à intimidade, à honra, à imagem e ainda o pode ser visto como um ato de improbidade administrativa, tendo em vista que, o servidor ou servidores, podem ter criado embaraços à adequação dos registros profissionais dela.

Segundo o especialista, o reconhecimento nos documentos é apenas um dos direitos que são negados às pessoas trans e travestis no Brasil. O país é um dos que mais mata transexuais no mundo.

“Essa negativa não se dá apenas em razão da falta de legislação específica, mas também pela dificuldade que a sociedade tem de compreender o que a ciência explica acerca do que seriam as identidades de gêneros e a sexualidades. Nesse sentido, não basta que seja criada uma lei disciplinando essa questão; é imprescindível que a discussão sobre gênero seja feita no âmbito educacional”, disse.

 

Perguntado pelo equipe do G1 se a legislação brasileira dificulta o acesso e permanência de pessoas transsexuais a suas mais diversas instituições, Clarindo rebateu com outros questionamentos.

“Quantas pessoas travestis e transexuais podem ser vistas no serviço público? Quantas pessoas travestis e transexuais conseguem entrar e permanecer na escola? Quantas pessoas travestis e transexuais possuem empregos formais? O exemplo da PM de SC em relação a uma de suas servidoras demonstra a dificuldade criada pelas instituições de Estado em relação à permanência digna e saudável de uma servidora nos quadros da corporação. Isso é a regra e não a exceção, infelizmente”, conclui.

Transgênero é a pessoa que se identifica com o gênero oposto ao qual ela nasceu. Não há relação com orientação sexual. — Foto: Alexandre Mauro / G1

Transgênero é a pessoa que se identifica com o gênero oposto ao qual ela nasceu. Não há relação com orientação sexual. — Foto: Alexandre Mauro / G1

Fonte: G1