A mochileira alegretense que participou de rituais xamânicos com índios

A história de ser uma viajante com uma mochila nas costas habitou a cabeça da alegretense Alesssandra Vieiro Ramos. Desde criança já manifestava esse desejo aos pais.

Mas tudo começou a se efetivar quando a pressão para fazer uma faculdade a fez dar asas e impulsos ao sonho de ser uma “mochileira”. Ela decidiu fazer faculdade em Curitiba aos 18 anos.  E, desde então, a guria nunca mais parou. Seu gosto pela natureza e cultura de cada local já levaram Alessandra a lugares incríveis.  Sempre sozinha e com sua mochila, com o necessário para viver no habitat que escolhe a cada viagem.  Para ajudar nos custos faz biscoito naturais e vende, o Ongaru que em indígena significa – alimentar os pássaros.

Aos 27 anos, formada em Ciências Políticas, ela se considera com a formação de vida como viajante – História de uma itinerante, mochileira, caroneira e que busca a visão da alma.

-Minha história com a estrada começou quando ainda era uma criança, nascida em Alegrete, e sempre que me perguntavam o que queria ser “quando crescer” a única coisa que vinha na mente era: “ viajante do mundo”, embora ainda não soubesse como, mas já sabia que um dia  ia sair por ai viajando com uma mochila nas costas, subindo montanhas, me banhando em cachoeiras, mares e respirando o ar puro da floresta. Conhecendo novas culturas e ouvindo histórias de novas pessoas e lugares.

Diz que de alguma forma acabou fazendo o curso de Ciência Política, pois uma outra ligação é a vontade de saber a história do mundo, e dentro do curso descobriu a Antropologia, e então as coisas começaram a clarear na mente. Isso foi uma forma de estudar a cultura de uma forma geral e viajar ao mesmo tempo, pondera.

Ao longo dos anos de faculdade, morando em Curitiba, se aproximou da cultura hippie e conheceu muitos viajeiros, artesãos e um mundo no qual se identificava desde sempre. São pessoas que viajam sozinhas, de carona, de kombi, bicicleta e do jeito que der. Fazem macramê, malabares, música e o que a alma artista de cada um encontra no caminho da vida alternativa e estradeira diz a jovem. Sem romantismo, onde cada um batalha suas próprias lutas e enfrenta preconceitos e todas as dificuldades de que quem tem alma livre precisa enfrentar.

-Por mais próxima dos hippies e “malucos de BR” que eu sempre estive, nunca me considerei uma, não sei fazer artesanato, nem sou acrobata muito menos sei tocar ou cantar. A sua busca era sempre encontrar uma forma de viajar, se sustentar e ao mesmo tempo encontrar uma profissão que ela amasse (essa busca ainda continua).

Ela gosta das praticas de comer frutas, granola e legumes que pudessem ser assados no calor de uma fogueira, com o intuito de sempre gastar o menos possível ( e continua até hoje, comida de fogueira que diz ser a sua favorita).

Primeira viagem sozinha (pra longe)

Viajar sozinha nunca foi um problema,  para a guria  e desde adolescente já havia feito pequenas viagens para Florianópolis, Curitiba e outros lugares pelo Sul. Mas foi em 2013, quando foi passar um mês no Rio de Janeiro em um hostel, mesmo tendo uma irmã carioca que a levou para vários lugares, foi nessa viagem que perdeu todos seus medos de andar sozinha. Foi de ônibus e quando estava fazendo check-in no hostel um grupo de hóspedes estava saindo em direção ao Cristo, a convidaram para ir, e apenas disse “que não era um atrativo que não estava disposta a gastar (na época R$ 70,00)”,

O pessoal fez uma vaquinha e pagou para ela ir junto. Ali na recepção daquele hostel já havia feito amigos e estava certa de que viajar sozinha é incrível.  Sério, diz  com tranquilidade: façam isso ao menos uma vez na vida .

Renascimento e a chapada dos veadeiros

Mas no meio do percurso, de estradeira, ela sofreu  um acidente de trânsito, em setembro de 2015, que mudou sua vida e toda a forma de viver. Foi  atropelada por um ônibus em Curitiba que amassou toda sua perna esquerda, “perdi o músculo da coxa e fiquei alguns meses de cama, quase sem me mexer, em Alegrete, me recuperando. Quando voltou a andar e retornou a Curitiba,  porque uma amiga havia lhe convidado para ir junto  para Alto Paraíso de Goiás, na Chapada dos Veadeiros; e foi lá que mudou toda sua visão do mundo.

O contato com essa cidade que é considerada a mais mística do Brasil, que fica no paralelo 14, o mesmo que passa por Macchu Picchu, diz a viajante se encontra de tudo: as mais belas cachoeiras, uma paisagem que remete aos tempos jurássicos, misticismo, ufologia, cristais, terapias espirituais e o mundo xamânico, descreve Alessandra. Um mundo que nos faz sentir a mais pura essência humana que se perde quando não conseguimos nos conectar com todo esse mundo mais espiritual.

-Eu já havia tido experiência com a medicina sagrada da Ayahuasca, que é mais conhecida pela doutrina do Santo Daime, e foi lá que tive um contato mais profundo com os povos indígenas e sua sabedoria ancestral. Quando voltou da Chapada, já não era mais a mesma pessoa, destaca. A partir daí, começou a sentir que estava mais preparada para encarar a vida que sempre almejou, a de conhecer novos mundos, tanto físicos quanto espirituais.

MONGARU

Ao longo da faculdade ela precisava se manter e, como não é artesã, teve a ideia de começar a vender comida na rua. Fazia bolos, tortas, pastéis e vendia em Curitiba e nos parques nos finais de semana. “Eu adorava, pois fazia amigos e me divertia enquanto ganhava meu sustento”. Até que chegou a uma receita de um biscoito recheado que se tornou o seu carro chefe, e hoje por onde ela passa, vende. Deixa consignado, revende para bares e restaurantes e por mais que trabalhe em outros lugares, nunca deixa de produzir, pois é um sucesso e é algo que deposita toda sua energia e amor.

Quando se formou, em 2017, um mês depois já estava começando a sua jornada que dura até hoje. Começou por Santa Catarina, foi morar na praia da Guarda do Embaú e la começou a desenvolver o projeto Mongaru, que significa “alimentar os pássaros” em tupi guarani. Alimentar não apenas da comida, mas da troca da arte, do saber.

Diz que a praia da Guarda do Embaú fica no vale do Maciambu, que faz parte do caminho de Peabiru, o caminho mais antigo da América Latina, que liga o sul de Santa Catarina e litoral de São Paulo a Machu Picchu e os povos Andinos. Esse caminho tem uma história antropológica e arqueológica incrível e sua ideia de fazer um documentário antropológico começou a nascer a partir daí.

As viagens de carona passaram a ser usuais em suas aventuras de conhecer locais únicos, sagrados e com a energia do Universo.

Depois de um tempo no litoral de Santa Catarina passou por uma dificuldade emocional, financeira e crise existencial que chegou em um momento em que, literalmente, não sabia mais o que fazer da vida. Foi aí então que decidiu sair viajando e ver o que acontecia. Pela primeira vez na vida sentiu ser forte o suficiente para encarar a vida na estrada. Veio para Alegrete e deixou suas coisas na casa de sua mãe, vende seus doces no comércio e comprou  uma barraca, a mochila e materiais para que pudesse levar consigo para produzir, como uma mini cozinha.

Sua primeira carona começou indo pro Uruguai, para a cidade de Salto. Ela lembra que os místicos  dizem que em Salto tem uma cidade subterrânea que abriga os povos intraterrenos chamada “Aurora” e é um ponto energético de cura da terra. Na época, choveu muito ela voltou para Alegrete e decidi ir para o Nordeste, afinal era inverno e ela diz que gosta do calor. Fez todo o trecho de carona, com caminhão no Brasil e dentro do Uruguai pegou carona em carros.  -A cultura da carona é muito diferente fora e dentro do Brasil, nos vizinhos as famílias com crianças param e no Brasil, 90% das caronas são com caminhoneiros. E sobre os perigos de assédio- zero, explica que nunca sofreu .

A sua primeira carona em direção a “nem sabia onde” foi com sua mãe que a deixou no arco, de Alegrete, em direção a Porto Alegre, na greve dos caminhoneiros. Conseguiu carona com o único caminhão que podia passar nos bloqueios, entregando insulina pelo Rio Grande do Sul, até chegar em POA. Depois disso nunca mais parou de viajar de carona, foi pelo litoral de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas e até que voltou ao lugar onde sua jornada espiritual começou, Chapada dos Veadeiros. -Eu queria seguir viagem, mas a cidade tem uma energia tão forte que tudo fluiu de uma maneira que ficou impossível sair de lá, fiquei exato um ano imersa em um mundo de xamanismo, cura espiritual, energia dos cristais e misticismo.

Seu ano na Chapada dos Veadeiros foi o mais intenso espiritualmente que já teve. O contato com os povos nativos indígenas e com a medicina sagrada da Ayahuasca é uma história que ocuparia ao menos umas 10 páginas contando. -O que posso resumir é que se um dia você quiser mudar sua vida, vá para a Chapada dos Veadeiros, aquele é o lugar mais incrível do Brasil”.

Depois da Chapada, foi a convite da sua chefe (sim, eu trabalhei formalmente em Alto Paraíso em uma loja de produtos naturais onde também vendia meus doces Mongaru)onde administrou uma pousada no Rio Grande do Norte. E considera que tudo que tudo que aconteceu fez parte dessa jornada que ainda não terminou. No Rio Grande do Norte, conheceu a garra e o sorriso do povo nordestino, “o melhor sorriso que já vi na vida, o mais sincero em meio a tanta dificuldade”. E claro, paisagens de tirar o fôlego, onde o vento faz a curva e o sol nasce primeiro.

No Rio Grande do Norte, certa vez, estava acampando em uma praia de comunidade Caiçara que não havia nenhum mercadinho nem onde comprar comida,  ela e um amigo que viaja de bicicleta pelo Nordeste. Relata que quando estavam colhendo lenha para fazer a fogueira começaram a chegar pessoas perguntando se eram “ciganos” e os ofereceram batata, tomate, cenoura e até uma posta de atum para assar na fogueira, e isso resume a hospitalidade do povo nordestino, conforme Alessandra, que diz que acolhem com um sorriso e coração aberto a todos os viajantes que já conhecem na estrada, os quais contam experiências parecidas.

Depois de um tempo lá pelo Rio Grande do Norte, chegou dezembro de 2019 e ela decidiu voltar para Alegrete, descansar e começar um novo projeto. Depois de 2 anos sem vir, precisava recuperar o folêgo. Dessa vez também veio de caminhão, mas com seu irmão que é caminhoneiro. Foram 17 dias descendo de Recife, passando por todo litoral Nordestino, Minas, e litoral do Sul. Morando dentro de um caminhão e vivendo a rotina de carga e descarga.

Neste verão está por Alegrete, vendendo seus Doces Mongaru, se preparando para subir novamente em direção ao  Nordeste. Com a missão de preparar suas habilidades e estudos voltados a cinematografia e audiovisual, para poder contar melhor as histórias dos caminhos por onde anda e continuar aquele projeto antropológico que contou no início da história.

Uma história sobre pegar carona na BR.

No início da jornada, estava parada em um trecho na saída de Osório da BR 101, em direção à Guarda do Embaú, quando para uma van anos 70, escutando um Bob Marley, com um filtro dos sonhos pendurado no espelho retrovisor. Entrei, era a primeira carona que não era caminhão. Ele me contou que era voador de parapente e me falou sobre a praia de Pipa-RN, “vá para Pipa” dizia ele, que lá costumava ir voar. Nesse dia, ele voltou cerca de 20km para pegar o parapente de voo duplo, pois iria me dar um voo caso as condições fossem favoráveis. Mas nesse dia, revela que ganhou  um grande amigo. Dois anos depois, está no Rio Grande do Norte e encontro esse amigo da BR em Pipa, e voa com ele de parapente, durante uma tarde de verão, sobre as belas praias de Pipa.

Sobre as coisas incríveis que a vida na estrada nos proporciona.

O instagram onde compartilha suas andanças por ai: @aluah.mongaru.

Vera Soares Pedroso

Colaboração: Alessandra Vieiro

 Fotos: acervo pessoal