Os casos confirmados de coronavírus no Brasil cruzaram nesta sexta-feira (19) a marca de 1 milhão, um dos mais marcantes registros da história da saúde pública do país. O cenário ocorre em meio à forte subnotificação em razão da baixa testagem. Ao todo, são 1.032.913 pessoas infectadas, 507.200 delas consideradas recuperadas. Foram 54.771 casos confirmados nas últimas 24 horas, um recorde para o período.
A pandemia também ceifou a vida de 48.971 brasileiros — 87% dos municípios do país têm menos de 50 mil habitantes. É como se todos os moradores de Tramandaí, no Litoral Norte, desaparecessem. O Brasil concentra 12,5% de todos os casos de coronavírus do planeta e 11% de todos os óbitos, apesar de abrigar menos de 2,7% da população mundial.
A simbólica linha foi cruzada em meio à retomada de atividades em vários Estados, à interinidade no comando do Ministério da Saúde e a uma expansão nas infecções com leve redução na velocidade nas mortes em nível nacional. O comportamento, no entanto, é diferente entre as regiões.
Neste momento, o país observa uma desaceleração da pandemia no Norte, Nordeste e Sudeste, mas uma aceleração no Centro-Oeste e no Sul, como mostrou GaúchaZH na quinta-feira (18). O diretor-executivo da Organização Mundial da Saúde (OMS), Michael Ryan, comentou brevemente que o aumento nos casos de coronavírus no Brasil não é tão grande quanto antes, mas que o quadro ainda é muito severo — ou seja, a epidemia não é página virada, um vez que segue crescendo.
O problema, está longe de acabar, uma vez que Estados começaram a retomar as atividades, como São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Há, portanto, risco de mais picos de infecção pelo país.
O pico é apenas “metade da história”: se o Brasil atingisse o ápice neste fim de semana, com 50 mil mortos, ainda haveria mais 50 mil pela frente. Para o futuro, cálculo da Universidade de Washington projeta 5 mil mortes por dia em agosto.
Na quinta-feira, o presidente Jair Bolsonaro voltou a criticar a OMS e o distanciamento social, única medida disponível para conter a epidemia. Ele afirmou que o Brasil “não aguenta mais o ‘fique em casa’” e insistiu mais uma vez no uso da hidroxicloroquina, cujo uso é desaconselhado por especialistas do mundo inteiro pela falta de estudos que comprovem os benefícios.
Brasil x Estados Unidos
Além do Brasil, apenas os Estados Unidos chegaram a 1 milhão de casos de coronavírus, o que ocorreu no fim de abril. Se a epidemia for analisada não pelo calendário romano, mas por uma linha do tempo diária após a confirmação do centésimo caso, a fim de comparar a doença no mesmo tempo epidemiológico, os Estados Unidos enfrentaram um cenário pior do que o Brasil lida hoje. No mesmo dia do calendário epidêmico, por lá havia quase 2 milhões de casos e 111 mil vítimas. Proporcionalmente, o Brasil tem 227,2 mortos por milhão de habitantes e os Estados Unidos, 336,6.
O problema é que o ritmo da epidemia no país está mais acelerado e logo deve ultrapassar a curva norte-americana em casos e mortes por milhão de habitantes, avalia Marcelo Medeiros, professor do Departamento de Economia da PUC-Rio, especialista em econometria e um dos coordenadores do projeto Covid-19 Analytics, que reúne também pesquisadores da Fundação Getulio Vargas (FGV).
A taxa de contágio dos Estados Unidos, hoje, é de 1,03, enquanto que, no Brasil, é de 1,14, segundo cálculo do Covid-19 Analytics. Isso significa que cem contaminados transmitem o vírus para outras 114 pessoas. Um indicador acima de 1 demonstra expansão da epidemia.
Medeiros destaca que o desenrolar da epidemia foi inverso entre os dois países. Nos Estados Unidos, muito mais conectado com países estrangeiros do que o Brasil e com vários aeroportos internacionais espalhados pelo território, o coronavírus se espalhou pelo interior de forma rápida e explosiva. Hoje, o país da América do Norte vê uma estabilização no avanço da doença.
Já no Brasil, a epidemia ficou concentrada por semanas em Rio de Janeiro, São Paulo e algumas cidades do Nordeste, com ritmo menor graças ao isolamento social. Apenas no fim de abril é que a covid-19 se espalhou de vez para cidades menores, ganhando força.
— Os Estados Unidos tiveram um boom muito forte no início, até que a curva estabilizou. Olhando para os números, o Brasil está melhor do que os Estados Unidos. Mas, se as curvas dos dois países não mudarem, com uma explosão de novos casos por lá, a gente vai ultrapassá-los em no máximo três semanas porque nossa taxa de crescimento é muito maior — diz Medeiros.
Visão diferente tem a médica epidemiologista Jeruza Neyeloff, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, para quem o cenário brasileiro é grave, mas não tanto quanto o norte-americano ou mesmo belga, italiano e espanhol, onde a proporção de mortos é maior. Contudo, ela pontua que o Brasil está “atrasado” na epidemia e pode galgar mais posições no futuro – por isso, pede que a população fique em casa.
— Um risco que Estados Unidos e Brasil têm é achar que o país está estabilizando e que um Estado que ainda não recebeu com tanta força o coronavírus pode reabrir. Com isso, pode se tornar um novo cluster. No Rio Grande do Sul e, em específico, em Porto Alegre, há uma piora muito grande na lotação de UTIs. A gente não pode achar que o jogo está ganho e partir para uma flexibilização exagerada. É ainda importante evitar aglomerações, que podem gerar surtos — afirma Jeruza.