Inquérito da Lava-Jato revela esquema criminoso internacional

Rede envolve doleiros, tráfico de drogas e corrupção política
 
Ao manter na prisão os doleiros envolvidos na Operação Lava-Jato, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi avisado de que o esquema de contravenção vai além da corrupção política. As 6.620 páginas do inquérito a que ZH teve acesso expõem as vísceras de uma intrincada rede criminosa, que envolve empresas de fachada, lavagem de dinheiro e tráfico de drogas. O alvo não eraAlberto Youssef, o doleiro que ganhou destaque por suas relações com o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa e com o deputado André Vargas (sem partido-PR), mas sim Carlos Habib Chater, um antigo frequentador da carceragem desde os anos 1990.
A partir do inverno de 2013, a Polícia Federal interceptou centenas de mensagens e telefonemas — inclusive em árabe — de Habib, conhecido em Brasília por suas relações com o ex-deputado José Janene (PP-PR), envolvido no mensalão e falecido em 2010. A movimentação financeira do doleiro impressiona. Sua base é o Posto da Torre, tradicional ponto de venda de combustíveis no coração da capital federal. Ali, cartão de crédito não é aceito. 
O pagamento é à vista, o que, segundo a PF, facilita a mistura de dinheiro limpo com o sujo. O rastro da dinheirama movimentada por Habib por meio da Valortur Câmbio e Turismo envolve bancos e offshores de paraísos fiscais, o submundo das drogas na Bolívia, e chega até a China, com operações junto a empresas de fachada em Hong Kong. Em um dos diálogos captados pela PF, Habib é consultado por um cliente que deseja mandar 20 milhões de euros para as Bahamas. Em outro, pergunta ao interlocutor sobre uma farra com uma prostituta loira de Istambul que o “mestre” vai trazer. 
Veja as conexões descobertas pela PF:
(clique na imagem para abrir o infográfico em tamanho maior)

Conforme o inquérito, na maior parte das operações de câmbio é utilizado o sistema de dólar-cabo, quando o agente se vale da estrutura de uma instituição financeira clandestina para realizar o crime. No linguajar da quadrilha, dinheiro é “carbono”, “papel” e “documento”. 
Na órbita de Habib, gravitam diversas estruturas paralelas envolvendo um grupo de doleiros, entre eles Youssef. Na tentativa de driblar eventuais grampos, são utilizados curiosos apelidos. Habib é ZeZé, Youssef é Primo ou Beto. Mas em termos de imaginação, ninguém supera Nelma Kodama, presa com 200 mil euros na calcinha. Entre os pseudônimos usados por Nelma, estão Greta Garbo, Cameron Diaz e Azurita Azul. Seus comparsas são identificados como Asterix e Samuel L. Jackson. E, nas entregas de dinheiro no país, a senha muitas vezes utilizada era “ingressos para jogo do Corinthians”.
Nelma é uma figura controversa. Foi amante de outro doleiro detido na Lava-Jato, Raul Henrique Srour, com quem andava às turras nos últimos tempos por conta de um calote. Em mensagens interceptadas, ela aparece utilizando policiais civis para extorquir o ex-amante, que, em contrapartida, ameaçava divulgar fotos íntimas da doleira.
Doleiro ficou desconfiado por não ser preso em outra ação
Ao flagrar essa intimidade, a PF ampliou o foco da investigação, com ramificações internacionais que chegam a Amsterdã, na Holanda, Nova York (EUA) e a ilha de Taiwan. Em contatos com uma amiga, Nelma revela suas desavenças com Youssef e preocupações com outro doleiro, Fayed Traboulsi, preso pela PF na Operação Miqueias, deflagrada em setembro de 2013, sob suspeita de participar de um esquema de desvio de recursos de fundos de pensão.
Ela também faz referências ao julgamento do mensalão, que à época transcorria. “O mensalão está a todo vapor e, óbvio, a operação de ontem vai tirar um pouco o foco, e eu creio que meu amigo vai ficar um bom tempo guardado (sic)”.
Foi em uma conversa informal sobre a Operação Miqueias que a PF encontrou a prova de que Youssef estava em plena atividade. E, a partir da troca de mensagens, em outubro de 2013, entre Habib e Youssef, a PF passou a monitorá-lo. À época, Youssef residia em apartamento de alto padrão na Vila Nova Conceição, em São Paulo, avaliado em R$ 3,8 milhões. 
Desconfiado com o fato de não ter sido preso na Operação Miqueias, ele se denuncia em uma mensagem a Habib: “Eu não sei como não entrei, mas eu tô achando que tem outra andando, entendeu? Porque não tem lógica, porque eu fiz muita operação! Eu tô achando que alguma outra paralela, entendeu? (sic)”.
Mais do que bons amigos
Uma das novas frentes de investigação da Polícia Federal é a ligação entre a compra pela Petrobras da refinaria de Pasadena, nos EUA, e o esquema de lavagem de dinheiro relevada na Operação Lava-Jato.
Os investigadores citam a existência de uma possível “organização criminosa” que estaria atuando “no seio” da estatal de petróleo. As suspeitas se ampliaram após virem à tona as relações entre o doleiro Alberto Youssef e o ex-diretor de Abastecimento da estatal Paulo Roberto Costa. Sem ainda saber quem era Costa, a PF buscou na internet o currículo do ex-diretor na Petrobras. Também foram anexadas cópias das notas fiscais nos autos. A PF investiga o significado de anotações na agenda apreendida com Paulo Roberto, com menção a percentuais e celulares de Sérgio Machado, presidente da Transpetro. O objetivo é verificar se essas operações estariam relacionadas com Youssef.
O inquérito da PF entra em pormenores da relação do doleiro com o ex-diretor da Petrobras. Além da compra de uma caminhonete Land Rover, até contas de hotel Tivoli em São Paulo e passagens de avião de Paulo Roberto foram pagas pelo doleiro. A Petrobras divulgou nota na última sexta-feira em que confirma as investigações, mas ressalta que “não representam, concretamente, nenhuma conclusão do trabalho investigativo, que ainda está em curso”.
Conexão com empreiteiras
Além de ter diversificado a atuação com tentáculos na Petrobras, no Congresso e como sócio de um laboratório de medicamentos, o Labogen, a investigação aponta elos do doleiro Alberto Youssef com grandes empreiteiras, como a Camargo Corrêa, que teria lhe repassado R$ 12 milhões (ou US$ 12 milhões, a PF ainda investiga a moeda citada).
“Tô com um pepinão na Camargo que você nem imagina, cara. Cara me deve 12 “pau”, num (sic) paga. Pior que o diretor é amigo, vice-presidente é amigo…”, queixa-se o doleiro.
A empreiteira lidera a construção da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, cuja obra é um escoadouro de dinheiro. Somente com aditivos contratuais, segundo o Tribunal de Contas da União, foram mais de R$ 800 milhões.
A movimentação de Youssef era tamanha que sua investigação ganhou outro nome dentro da Lava-Jato, batizada de Bidone. Ao bater às portas da banca do doleiro, a polícia deparou com um mundo de negócios suspeitos, com ramificações no tráfico internacional de drogas. A ligação do grupo com o tráfico é a gaúcha Maria de Fátima Stocker (apelidos Evi ou Diretora), presa na Espanha em outra operação simultânea da PF.
Droga seria enviada à Europa via Santos
Antes, durante as investigações da Lava-Jato, Maria de Fátima surgiu fazendo remessas de dinheiro para o Brasil mediante operações de câmbio, com o auxílio de Habib e Youssef. A droga era adquirida na Bolívia e no Peru e enviada via porto de Santos em contêineres para a Europa. Em mensagens trocadas em outubro de 2013, a PF flagrou problemas de atraso no envio de TED (transferência eletrônica disponível) a partir de uma conta do Posto da Torre, de Habib, o que gerou problemas para o pagamento de drogas.
Os fornecedores da droga se comunicavam pelos apelidos de 777, Black, Michelin, Chavo e Matusalém, e os diálogos são em espanhol. Em outro momento do inquérito, os emissários da gaúcha falam de uma apreensão no porto de Valência, na Espanha, de 55 quilos de cocaína, que, segundo o inquérito, reúne indícios de ter sido adquirida com os recursos das operações de câmbio realizadas pelos doleiros envolvidos na Lava-Jato.
Com a possibilidade de o Supremo soltar os envolvidos, o conteúdo do inquérito foi encaminhado há uma semana para o ministro Teori Zavascki. Diante do teor das denúncias, está nas mãos do ministro o destino dessa multinacional do crime.
 
Fonte: Zero Hora