“Paciente começou a chorar: ‘Estou me sentindo muito sozinho. A minha família me abandonou”

Diário do Front 2021: o dia a dia de médica intensivista na fase mais crítica da pandemia de coronavírus.

Roselaine Pinheiro de Oliveira, 54 anos, é chefe do Serviço de Medicina Intensiva Adulto do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre.

Tragédia sem precedentes, a pandemia de coronavírus, que agora ataca de forma implacável a população e o sistema de saúde do Rio Grande do Sul, motivou o Diário do Front ao longo de seis meses em 2020. 

 Dado o momento atual, o projeto de GZH, Rádio Gaúcha e Zero Hora, que mostra o dia de dia de profissionais da linha de frente, está sendo retomado para revelar o que vem acontecendo em alguns dos mais importantes e sobrecarregados hospitais da Capital. 

A composição do time é a original: participam o infectologista André Luiz Machado da Silva, 44 anos, do Hospital Nossa Senhora da Conceição, a enfermeira intensivista Isis Marques Severo, 41 anos, do Centro de Tratamento Intensivo do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, e a médica intensivista Roselaine Pinheiro de Oliveira, 54 anos, chefe do Serviço de Medicina Intensiva Adulto do Hospital Moinhos de Vento. 

— A sensação, hoje, é de incredulidade. Não imaginávamos que chegaríamos a esse ponto. A situação é assustadora — desabafa Roselaine.

Um compilado dos relatos do ano passado pode ser conferido nestas reportagens: link 1link 2 e link 3.

“Paciente começou a chorar: ‘Estou me sentindo muito sozinho. A minha família me abandonou’”

Dia 7 de abril: 19h52min

“Entre outubro e novembro do ano passado, cheguei à noite, em um plantão, para ver uns pacientes. Entrei no boxe de um paciente que tinha sido extubado naquele dia, durante a manhã. Lúcido, muito tranquilo, clinicamente muito bem, evoluindo muito bem.

Comecei a conversar com ele. Me apresentei:

 Eu sou a Rose. Sou a médica que está aqui agora. Vou vê-lo, examiná-lo. Estou acompanhando o senhor.

Ele começou a chorar. Perguntei:

 Mas o que aconteceu? Está tudo bem? O que houve?

E ele:

 Estou me sentindo muito sozinho. Estou abandonado. A minha família me abandonou.

Começamos a conversar. Eu disse que a família não tinha abandonado ele, que só não podia visitá-lo presencialmente, mas que estava sempre presente, como podia estar  acompanhando todo o quadro. Disse que ele estava indo muito bem, que logo, logo ele iria para o quarto e, certamente, veria a família.

Ele me falou que tinha um filho que estudava Medicina. Perguntei onde, e ele respondeu “na antiga Fundação” (UFCSPA).

 Eu dou aula lá!  falei.

Ainda ficamos conversando um pouco. Ele realmente estava muito, muito emotivo.

Agora, (vamos para o) início deste ano. Tem uma disciplina em que, a cada dois meses, o grupo de alunos muda. Eles sempre perguntam muito sobre a covid-19, sabem que faço parte de um grupo de médicos intensivistas que atende diretamente esses casos, tiram muitas dúvidas. Um aluno disse:

 Então eu acho que a senhora cuidou do meu pai.

E, realmente, era o filho daquele paciente (do ano passado). Fiquei muito, muito feliz. Eu disse:

 Sim, eu lembro exatamente do teu pai.

Foi muito emocionante. O pai dele está muito bem. Foi bem gratificante. Sempre digo que ninguém ensina, nós é que aprendemos. Tento passar para eles algo que exerço.”

“Se todos nos mobilizarmos para o bem, certamente todos os dias serão de notícias melhores”

Dia 5 de abril: 19h11min

“Todos os dias, esperamos notícias boas, esperamos que a situação melhore. Muitas vezes, temos essa esperança, mas ela não acontece.

Quando chegamos para ver um paciente, que estava pronto para sair do respirador e piorou durante a noite  precisou de um pouquinho mais de sedação e de um remédio para manter a pressão arterial (droga vasoativa), e isso nos impede de evoluir no processo de retirada, que é o desmame da ventilação mecânica , nós também sentimos. Embora as pessoas pensem que os médicos não têm esse tipo de sentimento, nós temos.

Ainda mais que nós falamos com os familiares, e os familiares também estavam na expectativa de que a melhora estivesse acontecendo. É algo que chamamos de intercorrência, que pode acontecer. Isso realmente abala muito, mas, por outro lado, temos a certeza de que ainda temos muito para oferecer.

Também nos dá um sentimento muito bom quando como hoje, no nosso grupo de médicos, recebemos a mensagem de uma iniciativa de duas médicas arrecadando o valor que cada um pudesse doar para comprar cestas básicas para pessoas que estão precisando (a serem destinadas à ONG Inova, de Porto Alegre). Em questão de poucos minutos, arrecadou-se um valor considerável. Isso me encheu de alegria.

No final do dia, apesar do dia duro  seguimos trabalhando com uma rotina estressante, muito cansativa, como temos falado sistematicamente , tivemos essa notícia, com essa iniciativa de duas médicas. Nos sentimos fazendo o bem. Ainda mais em um momento em que parece que estamos com uma diminuição da ocupação das UTIs  isso ainda é um primeiro passo. Assim como a nossa iniciativa de tentar ajudar é um primeiro passo. Se todos nos mobilizarmos para o bem, certamente todos os dias serão de notícias melhores.”

“Paciente nos presenteou com balão e bombons: ‘Obrigado por salvarem a minha vida’”

Dia 1º de abril: 7h43min

“Quando nós chegamos ao CTI para trabalhar, sempre trocamos palavras, gestos, olhares e tentamos nos fortalecer, de todas as formas, sempre preocupados em nos tornar profissionais e pessoas que estão ali para dar o seu melhor.

Esses dias, quando entrei, tinha um cestinho com vários bombons, um balão com os dizeres ‘Equipe CTI-HMV, obrigado por salvar minha vida’ e um porta-retrato que, em vez de ter um retrato, tinha uma mensagem. Em cada bombom, estava a seguinte mensagem: ‘GRATIDÃO é o sentimento que me define neste dia de despedida! Foram 102 dias em que estive acompanhado de ANJOS sem asas que salvaram a minha vida! Estou vivo, curado e feliz, graças a Deus e à dedicação, ao cuidado e ao amor de todos vocês, profissionais do Hospital Moinhos de Vento! Muito obrigado!’ E o nome do paciente.

Esse é o maior presente que podemos ter. O nosso objetivo, o nosso valor é cuidar de vidas. Essa vida foi cuidada. Ele está feliz, em casa. O nosso eterno agradecimento também a mais esse paciente pelo gesto de carinho. E a maior demonstração de carinho é ele voltar feliz para a sua vida porque isso também nos faz feliz.”

“A covid-19 é uma montanha-russa”

Dia 29 de março: 23h24min

“No CTI Adulto do hospital, organizamos, com as equipes de enfermagem e psicologia, uma agenda para as visitas presenciais, o que já acontece desde o ano passado. Por alguns meses, as visitas haviam sido proibidas, e isso gerou uma carga emocional a mais, de tristeza, angústia e preocupação, nos pacientes, não só em relação à doença, mas também em relação ao afastamento dos familiares.

Essas visitas são feitas de forma muito organizada. Em cada porta de boxe, estão determinados os dias da semana e os horários em que um familiar pode visitar. Ele não entra no boxe, especialmente se o paciente estiver entubado, em ventilação mecânica e ainda na fase aguda da doença.

Isso ajuda o familiar a entender como está indo o processo de evolução da covid-19, ele consegue ver o paciente. Ajuda a elaborar todo esse momento que é tão complicado.

Mas, mesmo assim, os familiares falam coisas como ‘eu gostaria muito de estar ali junto, de dizer para essa pessoa o quanto eu gosto dela, de tocar, de abraçar’. Mas isso não é permitido. Essa doença é uma montanha-russa. Às vezes, o paciente está indo bem e, em questão de 12 horas ou 24 horas, ocorre uma piora.

O familiar, estando presente, pode ver o local onde a pessoa é tratada, como está evoluindo, como acaba emagrecendo… Isso também ajuda no processo de entendimento do que está acontecendo, inclusive com aqueles pacientes que estão evoluindo mal.

Esse foi um projeto que deu muito certo e demonstra o quanto é importante o envolvimento da equipe multidisciplinar para que possamos encontrar soluções para situações que eram aparentemente intransponíveis. A visita era proibida, e esta era uma decisão praticamente mundial  todos os hospitais estavam fazendo isso. E nós decidimos pensar no que poderíamos fazer para minimizar.

Esse é um projeto que tem nos trazido um pouco mais de conforto porque sabemos que estamos, apesar de toda a situação, tentando oferecer um acolhimento um pouco mais carinhoso para as famílias e os pacientes.”

“Medo é um sentimento de todos nós”

Dia 24 de março: 22h04min

“Quando se dá informações aos familiares, fala-se muito do paciente, obviamente, e de tudo o que está acontecendo: a evolução, as melhoras, as pioras. Mas, dia desses, num final de tarde, em uma conversa um pouco mais demorada e com um pouco mais de tranquilidade, perguntei para a filha de uma paciente como ela estava e se queria me fazer alguma pergunta.

 Tô com medo  ela disse.

Ela, as irmãs e o pai estavam com medo porque não sabiam o que iria acontecer. Em alguns momentos, esteve tudo bem e, em questão de 24 horas, o quadro dessa paciente piorou. Precisamos voltar com a sedação, com o bloqueador neuromuscular (o bloqueador é para que o paciente não consiga se mexer e não interfira na ventilação, no aparelho que o está fazendo respirar).

Medo é o que todos nós temos. Medo de ficar doente, medo de, ao ficar doente, a doença ter uma evolução mais grave. E quem tem um familiar doente ou está doente tem medo. Quem tem familiar doente tem medo de que, apesar de toda a estrutura para tratar o paciente, a doença evolua de uma forma que não seja a mais adequada.

Aquela palavra  medo  e a forma como ela falou foram bem fortes. Me dei conta de que esse é um sentimento, uma preocupação não só dos familiares, mas de todos nós.

Esperamos que esse medo se torne um estímulo para que as pessoas se cuidem e para que cuidem dos outros também, como eu vivo, insistentemente, falando.”

“Não estamos pensando só na nossa carga de trabalho. Pensamos em todos nós”

Dia 22 de março: 23h

“Depois de um ano falando da pandemia, e especialmente nos últimos dias, devido ao agravamento da crise, o nosso pior momento no Brasil, pode parecer que falamos de cansaço porque estamos exercendo a nossa profissão e trabalhando com a dor, a doença e o sofrimento dos pacientes e dos familiares. Mas as pessoas, às vezes, esquecem que nós, médicos, ficamos doentes, que os nossos familiares ficam doentes ou podem ficar doentes. Isso traz uma carga emocional ainda maior.

Estamos frente a uma situação em que não podemos prescindir de trabalhar. Temos que continuar trabalhando porque qualquer um de nós que se afaste, por qualquer motivo, traz um peso maior aos outros colegas. Ultimamente, temos tido muitas notícias de médicos doentes, de familiares de médicos doentes. Claro que a vacina nos permite a previsão de uma doença menos grave, mas muitos familiares estão ficando doentes gravemente e indo para o CTI.

Recentemente, tivemos o pai de um colega no CTI que precisou ser entubado. Esse colega, como qualquer um de nós — não somos desprovidos de sentimentos —, ficou muito abalado. Conversei com ele várias vezes. Me coloquei à disposição, em nome de todos os colegas. Perguntei se precisava de alguma coisa, se precisava se afastar, se poderíamos ajudá-lo com algumas substituições para que ele pudesse descansar, se estava se alimentando, conseguindo tomar água, dormir.

Foi um processo muito difícil. Ele emagreceu alguns quilos. O pai dele, felizmente, nesta semana, teve alta do CTI. E a mãe me mandou uma mensagem muito carinhosa, embora eu não a conheça, agradecendo. É um alívio.

É importante lembrar para as pessoas que não estamos falando de uma situação que não nos atinge. Atinge todos. E quando pedimos para que as pessoas se cuidem, usem máscara, higienizem as mãos e não se aglomerem, não estamos só pensando na nossa carga de trabalho. Estamos pensando em todos nós. É uma questão de também cuidar do outro. Cada um cuida de si e cuida do outro, próximo a ele.

Temos colegas com familiares que têm outras doenças, em fase terminal ou não. Não é só a covid-19. Estamos frente a um vírus para o qual não temos a cura, mas temos a prevenção. Hoje, para minha felicidade, minha mãe fez a primeira dose da vacina. Minha tia que mora aqui em Porto Alegre já fez as duas doses. Minha outra tia também vai se vacinar. É a luz no fim do túnel: nos cuidarmos, nos mantermos saudáveis e fazermos a prevenção de forma adequada. Esta é a notícia boa: temos como nos ajudar. Um cuidando do outro.”

“Vai dar tudo certo, né, doutora? O que a senhora acha? Ela vai se recuperar?”

Dia 17 de março: 21h21min

“Hoje, no final do dia, foi transferida para o CTI uma paciente que ficará sob meus cuidados. Fiz o contato com a filha, que deixou o telefone como referência. Me coloquei no lugar dela: uma pessoa se dizendo médica, se apresentando, conversando sobre a mãe dela, querendo saber um pouco da família. Sem nos vermos, sem nos conhecermos.

Conversamos um pouco sobre toda a situação, o que eles estavam sabendo, o que tinha acontecido. Ela me falou que ainda ontem visitou a mãe virtualmente, por ligação de vídeo, e a mãe estava bem. Levou um susto hoje, quando soube que a paciente estava entubada. E depois outro susto porque foi abordada por uma médica que ela não conhece. É uma situação de total insegurança, por um lado, e da segurança que ela tem que ter de que o que eu estava dizendo era absolutamente verdade. Temos uma equipe preparada, que vai tratar a paciente com carinho e cuidado.

Ela me perguntou:

— Vai dar tudo certo, né, doutora? O que a senhora acha? Ela vai se recuperar?

Falei que essa é uma doença difícil. Posso comparar com uma montanha-russa, tem altos e baixos, tem momentos em que o paciente está bem, daqui a pouco uma situação aguda que tem que ser manejada. Não sabemos por que, muitas vezes, alguns pacientes são mais acometidos do que outros. O esposo da paciente está com a doença, mas é forma leve e ele está em casa.

Trocamos um pouco de carinho pelas palavras, tentando passar toda a segurança que podemos passar virtualmente. Certamente prefiro conversar olhando, mas, neste momento, não podemos. Ela ficou bem agradecida, e eu também. Pedi que a família seguisse como disseminadora de todos os cuidados que precisamos ter para que essa doença pare de progredir da forma como está acontecendo.”

Fonte: Gaúcha/ZH