ZH acompanha o adolescente desde abril, quando ainda passava por consultas, e narra dois dias ao lado do menino em Livramento
Fim de uma década turva para Cadu, que tinha menos de 4% de visão no olho direito e 10% no esquerdo A pipa decola impelida pelo vento, arisca como se fosse um pássaro, e logo o vermelho e o branco da vela de papel se projetam contra o céu, sob o olhar atento de Carlos Eduardo Pacheco Ribeiro, o Cadu, 16 anos. De pé, num campinho onde pastam cavalos puxadores de carroça, no bairro Rui Ramos, periferia de Santana do Livramento, o adolescente empina com a divertida perícia dos meninos pandorgueiros da fronteira sul.
Enquanto dá estirões na linha, num puxa e larga sincronizado, Cadu contempla a subida do marimbo – assim os santanenses chamam a pandorga de formato retangular. Mas nem sempre foi assim. Antes de se submeter a um transplante de córnea, ele abortava as brincadeiras no início. Voltava para casa mais cedo, desolado, porque não conseguia avistar a explosão de cores voadoras que os outros pipeiros viam.
– Ele ia embora, acho que era por causa da visão dele – diz Henrique Oliveira Silva, 13 anos, parceiro de marimbos.
É que Cadu estava quase cego: de 2% a 4% de visão no olho direito, o esquerdo com 10%. Não podia circular dentro de casa sem esbarrar nas paredes, bater nas sempre doloridas quinas da mesa. A doença, uma ceratocone severa, agravou-se a partir dos cinco anos, e foi piorando gradativamente.
Em 17 de junho, o garoto passou por um transplante de córnea no Hospital Banco de Olhos, em Porto Alegre. O procedimento é ambulatorial e um dos mais rotineiros entre os transplantes. Simples, desde que existam doadores, e que fez Cadu renascer das trevas.
Já recuperou em torno de 60% da visão no olho operado, o direito. O cirurgião oftalmologista Fernando Leite Kronbauer anuncia, otimista, que ele poderá obter 100% de nitidez até o final do ano, quando será avaliada a realização do segundo transplante, no olho esquerdo.
– Ele era considerado tecnicamente cego – informa o médico.
ZH acompanha a transformação de Cadu desde abril, quando ainda passava por consultas, e, nas páginas seguintes, narra dois dias ao lado do menino em Livramento, onde agora ele redescobre o mundo de luzes do qual fora expulso.
Cadu é quieto, apalpa as palavras antes de falar, como um típico adolescente da fronteira com o Uruguai. Se o assunto envereda para pandorgas, no entanto, ele se solta. Discorre sobre os tipos de papagaios que conhece – o marimbo, a bomba (arredondada), o morcego, a caixa (engenhoca de dois andares) e o cometa dos vizinhos castelhanos.
Ensina que o material, as varetas e o papel da armação, devem ser leves, mas resistentes para aguentar as lufadas repentinas. Cada peça, como a rabiola (duas tiras compridas de pano que servem de leme), é indispensável ao equilíbrio do voo.
A rotina de Cadu, aos poucos, é retomada. Voltou a subir o Morro do Caqueiro, um belvedere internacional que divide as cidades de Livramento e Rivera. Ao lado do amigo Henrique, aproveita a amplidão para empinar pandorgas ou admirar as paisagens que se descortinam na vertiginosa horizontalidade do pampa. Então, relata o que vê ao longe, primeiramente no lado uruguaio.
– Vejo carros passando, as casas, uma antena (telefonia celular)… – vai enumerando.
Há um instante de incerteza, porém. Cadu não consegue vislumbrar uma bandeira do Uruguai, azul e branca, que tremula no telhado de um casebre, a uns 600 metros de distância. Henrique tenta ajudar, sinaliza a direção, mas ele não percebe o patriotismo do orgulhoso morador de Rivera, talvez um reciclador de lixo. Na dúvida sobre o que enxerga ou não, silencia.
O passeio no topo do Caqueiro prossegue. Postado junto ao marco divisório entre os países, o de número 676, Cadu depois se volta para a margem brasileira. Aponta o dedo para mostrar o que distingue na cidade onde nasceu:
– Lá está o Village (condomínio residencial do bairro Rui Ramos), o mato da faculdade (reserva de eucaliptos), as casas, o ônibus…
Fonte: Zero Hora
– Ele ia embora, acho que era por causa da visão dele – diz Henrique Oliveira Silva, 13 anos, parceiro de marimbos.
É que Cadu estava quase cego: de 2% a 4% de visão no olho direito, o esquerdo com 10%. Não podia circular dentro de casa sem esbarrar nas paredes, bater nas sempre doloridas quinas da mesa. A doença, uma ceratocone severa, agravou-se a partir dos cinco anos, e foi piorando gradativamente.
Em 17 de junho, o garoto passou por um transplante de córnea no Hospital Banco de Olhos, em Porto Alegre. O procedimento é ambulatorial e um dos mais rotineiros entre os transplantes. Simples, desde que existam doadores, e que fez Cadu renascer das trevas.
Já recuperou em torno de 60% da visão no olho operado, o direito. O cirurgião oftalmologista Fernando Leite Kronbauer anuncia, otimista, que ele poderá obter 100% de nitidez até o final do ano, quando será avaliada a realização do segundo transplante, no olho esquerdo.
– Ele era considerado tecnicamente cego – informa o médico.
ZH acompanha a transformação de Cadu desde abril, quando ainda passava por consultas, e, nas páginas seguintes, narra dois dias ao lado do menino em Livramento, onde agora ele redescobre o mundo de luzes do qual fora expulso.
Cadu é quieto, apalpa as palavras antes de falar, como um típico adolescente da fronteira com o Uruguai. Se o assunto envereda para pandorgas, no entanto, ele se solta. Discorre sobre os tipos de papagaios que conhece – o marimbo, a bomba (arredondada), o morcego, a caixa (engenhoca de dois andares) e o cometa dos vizinhos castelhanos.
Ensina que o material, as varetas e o papel da armação, devem ser leves, mas resistentes para aguentar as lufadas repentinas. Cada peça, como a rabiola (duas tiras compridas de pano que servem de leme), é indispensável ao equilíbrio do voo.
A rotina de Cadu, aos poucos, é retomada. Voltou a subir o Morro do Caqueiro, um belvedere internacional que divide as cidades de Livramento e Rivera. Ao lado do amigo Henrique, aproveita a amplidão para empinar pandorgas ou admirar as paisagens que se descortinam na vertiginosa horizontalidade do pampa. Então, relata o que vê ao longe, primeiramente no lado uruguaio.
– Vejo carros passando, as casas, uma antena (telefonia celular)… – vai enumerando.
Há um instante de incerteza, porém. Cadu não consegue vislumbrar uma bandeira do Uruguai, azul e branca, que tremula no telhado de um casebre, a uns 600 metros de distância. Henrique tenta ajudar, sinaliza a direção, mas ele não percebe o patriotismo do orgulhoso morador de Rivera, talvez um reciclador de lixo. Na dúvida sobre o que enxerga ou não, silencia.
O passeio no topo do Caqueiro prossegue. Postado junto ao marco divisório entre os países, o de número 676, Cadu depois se volta para a margem brasileira. Aponta o dedo para mostrar o que distingue na cidade onde nasceu:
– Lá está o Village (condomínio residencial do bairro Rui Ramos), o mato da faculdade (reserva de eucaliptos), as casas, o ônibus…
Fonte: Zero Hora