O relato, a seguir, é de uma alegretense que sofreu com um relacionamento abusivo por 20 anos. Ela era agredida pelo esposo e se sentia culpada, porque a família e as pessoas a faziam acreditar que a culpa era dela. Quando finalmente conseguiu se livrar de toda tortura, foi até uma Delegacia de Polícia na região Nordeste do Brasil, pois não residia em Alegrete, à época, e ouviu do Delegado que ela poderia se arrepender por denunciar o companheiro. Pois ele tinha um bom emprego e ela precisava dele para o sustento da casa, já que não trabalhava.
No outro dia foi encaminhada à Delegacia de Mulher e ouviu que poderia ser processada pelo companheiro, já que as agressões e ameaças não seriam comprovadas. Naquele dia, não foram agressões físicas e, sim, ameaças verbais. Entretanto, a alegretense alega que o filho mais novo do casal foi colocado para dar depoimento e por medo que o pai ficasse preso, não quis confirmar a ameaça, mas teria dito que já tinha presenciado a mãe ser agredida. No final, ela saiu da Delegacia decepcionada, frustrada e com a certeza que , naquele estado, a Lei Maria da Penha só vale para casos em que a mulher chegar mutilada, quebrada ou até mesmo em óbito.
(imagem ilustrativa)
A entrevista ao PAT foi para encorajar outras mulheres a denunciarem no primeiro tapa, na primeira agressão.
A alegretense que, tem 37 anos, pediu para não ser identificada por receio do ex. Depois de um divórcio conturbado, atualmente reside em Alegrete com os dois filhos.
A infância:
Quando estava com cinco anos, ela viveu a separação dos pais. A família era muito humilde e eles enfrentavam algumas dificuldades. Já aos sete, uma tia também se divorciou e foi morar na sua casa com os filhos. Naquele período, a alegretense lembra que um dos primos já era adolescente. Durante as madrugadas, ele entrava em seu quarto e tentava abusá-la.
“Para evitar que ele fizesse algo, eu fingia que estava acordando, mas na verdade, nem tinha dormido. Assim foi por um bom período, e assim, ele nunca conseguiu consumar o ato”- revelou.
Depois de um tempo, sua mãe casou novamente com um homem que foi um verdadeiro pai. Ali, a família ficou sem outros familiares na casa.
O casamento
Aos 17 anos conheceu a pessoa que ela julgou ser seu príncipe encantado. Durante o namoro houve um pequeno desentendimento mais sério. O ex deu-lhe um tapa no rosto, mas logo pediu perdão e prometeu o mundo.
Com 19 anos, já casada, a primeira gravidez. No início uma maravilha, porém, aos sete meses de gestação, novamente levou um tapa no rosto.
Por estar sensível, se envolveu com as palavras bonitas e pedidos de desculpas. No dia da agressão pensou que não poderia falar com a família, pois como iria retornar grávida, sabendo que as condições financeiras não eram boas. Seria vergonhoso, em sua cabeça, esse era o pensamento.
Depois que o filho nasceu, as agressões ficaram mais frequentes. Mas, nunca na frente do filho. O acusado levava o filho para a casa de um familiar e, na volta, a agredia. Puxões de cabelo, era arrastada pela casa, até ter um vidro enterrado no pé. A mulher estava com um copo na mão e, no momento da agressão, caiu e quebrou. Enquanto era arrastada pela casa, cacos de vidro enterraram no pé.
Até aqui a alegretense não comentava com a família por receio e vergonha.
A segunda gravidez
Na segunda gestação o ex passou a tratá-la bem. Foram alguns meses de “paz”. Mas, diferente do primeiro filho, no segundo o acusado perdeu a vergonha e passou a agredi-la na frente dos meninos. A primeira vez, foi quando o caçula era pequeno, tinha cerca de dois anos. Ele estava no colo dela quando houve uma discussão, naquele dia ele a acertou um violento soco no olho .
Como a família iria visitá-la, a desculpa foi de que o pequeno havia lhe dado uma cabeçada. Mais uma vez, a vergonha e a sensação de que poderia ser vista como culpada pelos familiares, ela omitiu.
A transferência
No trabalho do ex-marido surgiu a oportunidade de uma transferência para uma cidade no nordeste do Brasil.
Ela mudou-se com os filhos pequenos e o companheiro. Lá, ele perdeu totalmente o receio de bater e passou a fazer isso com frequência. Neste período, as crianças já não eram mais respeitadas e por várias vezes presenciaram a mãe ser agredida. Qualquer discussão, quase sempre por ciúmes, dos dois lados, o resultado acabava em socos, tapas e outras agressões.
A decisão de falar para família
Se sentindo humilhada, a alegretense decidiu dividir com a família o que acontecia, já que estava muito longe de casa e fragilizada. Como supunha desde o princípio, os familiares que enxergavam o agressor como um bom pai de família, trabalhador e com caráter, a fizeram pensar que a culpa era dela. Afinal, teria que ser mais paciente com o “companheiro’.
“De tanto ouvir que não poderia me queixar, que a culpa deveria ser minha – assim me sentia culpada mesmo” – explicou.
Sempre submissa, um dia a ainda jovem mulher resolveu fazer algo diferente. Começou a estudar e se valorizar mais.
O início da mudança
Um dia ao ser agredida, ela” surtou”. Começou a revidar as agressões. Ele é um homem de quase dois metros de altura, mais de 90kg. Eu com pouco mais de 1,50m e cerca de 50 kg. Mesmo assim, pela primeira vez, o agredi com a mesma intensidade.
“Depois olhei pra ele e afirmei que da próxima vez iria acionar a polícia. Independente do emprego, filhos e tudo que ele valorizava. Iria me defender”.
A depressão
Depois do episódio em que revidou, o acusado parou de agredi-la. Por um tempo, parece que o susto o deixou consciente que ela poderia ter uma reação diferente do que simplesmente apanhar.
“Mas eu cansei de apanhar, durante um ano ele não me agrediu. Porém, eu já estava num quadro acentuando de depressão. Pesando 39 kg tive que ser internada numa UTI. Tive que levar até choque e quando voltei, não tinha memória. Entretanto, eu o rejeitava, ninguém entendia, pois parecia uma “marido” atencioso.
Por culpa, ele acionou os melhores médicos para cuidarem de mim. Psiquiatra, psicólogo, por um período eu lembrava somente o positivo da vida.” – descreveu.
A gota d’água
Quando já estava um pouco melhor, retornou para casa e num determinado dia, novamente, uma discussão teve um final negativo. O acusado passou a fazer ameaças, ele não a agrediu fisicamente, mas com palavras.
Determinada, a alegretense acionou a Polícia Militar daquele estado, onde à época, residia.
Os policiais disseram que para prendê-lo ela deveria fazer registro na Delegacia de Polícia e representar contra o esposo.
Assim ela fez, saiu de casa e relatou tudo o que estava passando, além dos anos de agressões. Foram 20 anos.
Para surpresa da alegretense o delegado atendeu o homem primeiro e quando ela foi falar, de forma sutil o policial quis demove-la da ideia. O homem não tinha antecedentes, era trabalhador e tinha a família para sustentar, além de ter se colocado como vítima. Para o Delegado o homem disse que era ele quem sofria as agressões. “Na hora eu disse para o delegado olhar para o porte físico dele e o meu. Com toda certeza eu estava sempre em desvantagem.
Ainda ouvi do representante da lei que ele poderia ser espancado, pois os presos não toleram homens que batem em mulheres. Lembro que falei: quero mais que ele sofra na pele tudo o que passei durante as duas décadas de submissão e agressões.
Ele ficou preso naquela noite. Mas, no dia seguinte, estava solto. Contratou um ótimo advogado, além de ter o respaldo do depoimento do nosso filho mais novo, que por medo de ser responsável pela prisão do pai, alegou que não tinha ouvido ele a ameaçar. “Fiquei sem comprovar. Mas meu menino nem sequer teve o auxílio de um psicólogo. Estava com medo e no final do depoimento disse que já tinha presenciado o pai me bater. Para piorar ainda mais, na delegacia da mulher daquela cidade no noroeste do Brasil, ouvi que não tive provas suficientes e que no final poderia ser processada pelo meu agressor. Entrei como vítima e sai como “acusada”. Algo que me deixou muito mal, mas não deixei de apostar em mim. Me separei e retornei para Alegrete com meus filhos. Um adolescente e outro pré-adolescente. Ainda faço tratamento para depressão, mas hoje consigo respirar em paz”, comenta.
“Fiquei pensando que a Lei Maria da Penha só atende casos extremos, se a mulher chegar toda quebrada, dilacerada ou morta – pelo menos comigo foi assim lá no Nordeste. Porém, queria levar esse relato como uma ajuda para milhares de mulheres que passam por algo semelhante.
Na atualidade ela reside em Alegrete e mantém o tratamento contra a depressão. Porém, se sente muito mais acolhida e toda a exposição da história é para que as mulheres tenham coragem e denunciem. Não se pode desistir, não devemos nos calar”- finalizou.
Flaviane Antolini Favero