134 chamadas não atendidas de uma mãe para a filha

Faça o exercício de telefonar, ininterruptamente, para quem mais ama no mundo. Seus dedos cansarão na metade.

A impunidade nunca acontece sem cúmplices, sem aquelas pessoas sem noção, que não entendem de empatia e nunca se colocam no lugar do sofrimento do outro. Elas ajudam o esquecimento a prosperar, fazem piadas do que não tem graça, pisam nas lápides alheias como se fosse um caminho qualquer.

Inacreditável que alguém de Santa Maria, que vivenciou o cotidiano da chacina de perto, possa caracterizar um texto cobrando justiça para 242 mortos e 680 feridos da boate Kiss como “merda”. E que ainda tenha o sadismo de querer stalkear os retweets para controlar e debochar de sua adesão.

Talvez porque ache irrelevante discutir o assunto, talvez considere uma notícia antiga, de sete anos atrás, talvez veja que nem foi tão grave assim, que houve exagero da comunidade, que os empresários e as autoridades da época não tiveram culpa, que representou um mero e espontâneo acidente, ou ainda que há mais amenidades para se falar na vida do que a orfandade de centenas de famílias até hoje aguardando o julgamento dos culpados.

Continuarei escrevendo, goste ou não goste de mim, tenho filhos adolescentes e não suporto nem imaginar perdê-los. Disse imaginar, porque a realidade é insuportável a quem experimentou essa brutal saudade, essa porta eternamente fechada de um quarto dentro de casa.

Não tem mesmo ideia do que é para os pais dar um tchau a um filho que vai a uma festa e perceber depois que significou um adeus, que ele engoliu fumaça, sofreu queimaduras, espumou plástico negro e tombou debaixo de uma montanha de corpos procurando a claridade da rua e uma fresta para respirar. E que simplesmente não existiam saídas de emergência para uma casa noturna recebendo o dobro de pessoas de sua capacidade máxima.

Não tem conhecimento do que é falar para o filho “te cuida” e descobrir que ele não contou com nenhuma chance de se defender e evitar o pior. Faça o exercício de telefonar 134 vezes, ininterruptamente, para quem mais ama no mundo. Seus dedos cansarão na metade. Mas foi o número de chamadas não atendidas, naquela madrugada de 27 de janeiro de 2013, de uma mãe para sua filha que se encontrava morta.

Fonte: Gaúcha/ZH