Arquidiocese de Porto Alegre cria comissão para combater abusos sexuais na igreja católica

Comissão é pioneira no Brasil e vai apurar casos nos 29 municípios de abrangência da instituição.

A Comissão Arquidiocesana Especial de Promoção e Tutela de Crianças foi lançada pela Arquidiocese de Porto Alegre, na tarde desta quarta-feira (26) durante uma coletiva a jornalistas, com o objetivo de combater e denunciar o abuso infantil vindos de membros da igreja católica (veja abaixo os canais de denúncia).

Pioneira no Brasil, a Comissão é uma resposta à uma Carta Apostólica do Papa Francisco e vai apurar casos nos 29 municípios de abrangência da Arquidiocese de Porto Alegre.

Na Vos estis lux mundi (Vós sois a luz do mundo), o Papa torna obrigatório padres e religiosos denunciarem suspeitas de abusos sexuais. O decreto, que foi divulgado em maio do ano passado, deu prazo até junho deste ano para que todas as arquidioceses do mundo criassem sistemas simples de notificação de denúncias.

O Arcebispo de Porto Alegre, Dom Jaime Spengler reconhece o avanço por parte da Igreja Católica.

“Temos que reconhecer que não se deu a devida atenção ao longo do tempo a esses casos de abuso. É uma realidade sem dúvida e que explodiu mundo afora, em torno de 20, 30 anos atrás e que de repente nós começamos a ser informados e a se dar conta dessa situação que está muito presente na sociedade.”

Em Porto Alegre, a Comissão começou a ser pensada em agosto de 2019, quando foi criado um grupo de trabalho. A equipe, formada por seis pessoas, montou um projeto, estabeleceu metas, reunindo-se uma vez por mês para estudar a implementação da Comissão.

Fizeram parte dessa equipe Dom Jaime, o padre e mestrando em direito canônico Fabiano Schwanck Colares, uma delegada da Polícia Federal, uma psiquiatra especialista em crianças e adolescentes, uma psicopedagoga e uma psicóloga.

A partir desta quarta, a Comissão será composta por 12 pessoas, com a participação de uma assistente social, um jurista, uma procuradora de justiça do Ministério Público e uma delegada chefe do departamento de Grupos e Pessoas Vulneráveis da Polícia Civil.

Canais de denúncia

Não serão aceitas denúncias anônimas

Comissão foi anunciada em coletiva à imprensa, na tarde desta quarta-feira (26). — Foto: Léo Saballa Jr./RBS TV

Comissão foi anunciada em coletiva à imprensa, na tarde desta quarta-feira (26). — Foto: Léo Saballa Jr./RBS TV

Informar e investigar

A comissão terá duas linhas de trabalho, informativo e preventivo, e investigativo.

A primeira será através de material pedagógico que fala sobre o trabalho e que serão distribuídos em 158 paróquias que fazem parte da Arquidiocese de Porto Alegre.

“O trabalho da comissão tem este viés de acolher possíveis denúncias de abusos, mas sobretudo tem a missão de promover conscientização e informação a respeito desta realidade. O objetivo também é de promoção, formação para os diversos segmentos, todas as pessoas que trabalham em contato direto com menores”, diz Dom Jaime.

A linha investigativa irá trabalhar em conjunto com o poder civil.

“A igreja em si tem um ordenamento e direito próprio, que tem o seu direito penal e a maneira de julgar. Mas o que veio no pedido do Papa [Francisco] é que as comissões trabalhem em conjunto com o dever civil”, aponta Fabiano, que será o coordenador da Comissão.

Fabiano explica que no direito da igreja existem punições, mas não existem prisões. Os denunciados receberiam penas canônicas. Com a Comissão, a partir da denúncia, todos os profissionais irão analisar e, se for de fato verídica, será protocolada uma denúncia no Ministério Público (MP).

“O MP trabalha com as suas regras e nós abrimos a investigação canônica. Chegando a nós, encaminharemos a eles. E se chegar a eles, encaminharão para nós”, destaca Fabiano.

As denúncias serão apuradas por processos administrativos independente do processo judicial canônico, para agilizar a apuração dos casos. O objetivo é que em até 90 dias, a partir da denúncia, o caso seja concluído.

Assim que a Comissão concluir a apuração, enviará a um grupo criado no Vaticano para tratar deste assunto.

“Há uma linha direta de comunicação com o grupo lá na Santa Fé. Antes a denúncia se perdia no meio do caminho, havia um sistema de corrupção que impedia de chegar. Agora o processo será acelerado, para que seja entregue o mais rápido possível”, destaca Fabiano. Segundo ele, os casos de investigação poderiam durar de 4 a 5 anos.

Para as denúncias, o público poderá entrar em contato através de um telefone ou e-mail. A psicóloga da comissão receberá as denúncias. Será marcada, então, uma conversa com o denunciante. “A partir dessa conversa será aberto um protocolo que seguirá vários passos investigativos”, explica o coordenador.

Acolher os denunciantes

Ele admite que antes, as pessoas que decidiam denunciar eram vistas como pessoas que gostariam de prejudicar a instituição e as denúncias não eram levadas a sério. “Queremos acolher a pessoa da melhor maneira possível, sempre de maneira humana e entendendo que ela vem com a verdade”

Caso a Comissão concluir que houve mesmo um abuso de parte de alguém ligado à Igreja, será oferecido acompanhamento ao denunciante. “E em caso de comprovação abuso, a diocese vai encaminhar o necessário acompanhamento psicológico, psiquiátrico e espiritual”, reitera Dom Jaime.

Se o denunciado for um clérigo, Dom Jaime diz que a pessoa será afastada do exercício por um tempo. “Enquanto isso, se espera a resposta da doutrina da fé, que fará as análises a respeito da decisão. Em caso de sentença condenatória, se comunica a pessoa acusada.”

Avanços na Igreja

Fabiano afirma que os últimos três Papas, João Paulo II, Bento XVI e o atual, Francisco, evoluíram muito nas questões do combate ao abuso por membros da igreja católica.

“Até 2001 não se falava sobre abuso. Tivemos uma avalanche de abusos na década de 60 e 70 e a legislação da Igreja não falava sobre, não era nem citado.”

Segundo Fabiano, em 2001 o Papa João Paulo II criou a primeira legislação, que apontava que os crimes sexuais prescreviam em 10 anos. Bento XVI, em 2011, ampliou para 20 anos as prescrições, e citou, pela primeira vez a pornografia dentro da Igreja.

“Agora é uma grande revolução. E não há prescrição do crime. Nós vamos acolher qualquer pessoa, que pode ter sofrido abuso há 30, 40 anos.”

Entre os pedidos do Papa Francisco é que a Comissão seja formada por uma maioria de leigos e mulheres. Em Porto Alegre, das 12 pessoas há nove mulheres, e também nove leigos.

A Comissão do Rio Grande do Sul se inspira na Comissão de Boston, nos Estados Unidos, que foi criada após um jornal da cidade divulgar diversos casos de abusos de crianças por padres católicos. A história dos abusos na cidade americana foi retratada no filme Spotlight, em 2016.

Fabiano conta que em Boston a Comissão, que tem 15 anos, tornou-se uma referência aos moradores, que buscam a instituição para denunciar casos que não envolvem a igreja. “Hoje a comissão é referência para a sociedade civil. As pessoas procuram a Diocese sabendo que as pessoas vão ouvi-las humanamente e irão protocolar com a denúncia aos órgãos civis.”

A Arquidiocese de Porto Alegre está com grande expectativa em relação ao trabalho da comissão.

“É uma grande mudança. A igreja trabalhando na linha transparência. Com o tempo vamos ter que melhorar e aperfeiçoar o trabalho”, ressalta Fabiano.

Fonte: G1